Retrato do Artista quando Jovem
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Retrato do Artista Quando Jovem é o primeiro romance de James Joyce, publicado em 1916. Narra experiências de infância e adolescência de Stephen Dedalus, alter ego do autor; termina com a recriação de seus ritos de passagem para a idade adulta, que incluíram deixar para trás a família, os amigos e a Irlanda e ir viver no continente.
A obra, cuja prosa evolui estilisticamente conforme o próprio Stephen se torna capaz de narrar-se de maneira mais sofisticada, baseou-se numa idéia que Joyce tivera havia mais de uma década, e que depois foi publicada na obra póstuma Stephen Herói. O Retrato do Artista é um romance de formação, tipo de romance em que é exposto de forma pormenorizada o processo de desenvolvimento físico, moral, psicológico, estético, social ou político de uma personagem, geralmente passando por fases de sua vida (infância, adolescencia, adulta, maturidade).
Opinião
O Retrato do Artista Quando Jovem, é o primeiro romance de James Joyce. Stephen Dedalus é o herói da obra, alter ego do autor. Daí o seu carácter marcadamente autobiográfico. O nome atribuído ao herói, Dedalus, é uma referência óbvia ao mito helénico. Tal como o herói grego, também Stephen queria voar. Assim como Joyce. Os três procuraram sempre a libertação, por entre uma realidade mesquinha e atrofiadora.
O livro relata a juventude de Stephen, passada entre realidade profundamente marcantes na personalidade de Dedalius/Joyce: o colégio de Jesuítas, com os seus métodos espartanos de ensino, a cidade de Dublin, suja e dominada pela eterna querela política face à dominação inglesa e uma família abastada mas que, gradualmente, cai na ruína.
A perpétua luta pela independência da Irlanda obcecava os seus concidadãos. Mas Dedalus coloca-se para lá dessa realidade: “Quando a alma de um homem nasce neste país, lançam-lhe logo redes, para a impedir de voar. Fala-me de nacionalidade, de língua, de religião; eu vou tentar voar para lá dessas redes”. E mais adiante: “A Irlanda é uma porca velha que devora a sua ninhada”.
Perante tudo isto, o jovem Dédalus anseia por voar mais alto. Procura nos poetas, vasculha em Aquino, refugia-se nas profundezas do saber, mergulha na lama de Dublin, entre poetas e prostitutas, submerge no mais profundo misticismo jesuítico mas nada lhe permite construir as suas asas de cera. O seu mundo seria outro.
Mas, para lá chegar, foi preciso viver. É desta vida multifacetada e mortificada que Joyce dá conta, numa obre genial em termos estéticos. Ao longo do livro evolui uma escrita ao alcance apenas dos mais geniais dos escritores. A beleza das palavras, a melodia da narração, bem respeitada por esta tradução, eleva bem alto o génio deste escritor que cuidava os seus textos como se preciosidades fossem. E eram!
O estilo é profundo, voltado para o interior, para as profundezas da alma. Os diálogos, curtos e raros servem apenas para espelhar a alma de Dedalus, usando o monólogo interior de forma quase sistemática e inovadora para a época. Por toda a obra é manifesta a inquietude de Joyce perante os dilemas mais profundos da vida e a função do pensamento religioso. Uma terrível guerra interior, travada entre a moral católica e a atracção da realidade mundana perpassa a mente de Stephen de forma impiedosa e marcante.
No final dá-se o triunfo da vida; o triunfo de um mundo sobre o qual as asas de Dédalus hão-de pairar para sempre.
'Um retrato do artista quando jovem', romance de estréia do escritor irlandês publicado em 1916, é o despertar intelectual de um dos personagens literários mais célebres. Semi-autobiográfico, o livro conta o processo de transição do jovem Stephen Dedalus para a maturidade e o autoconhecimento. Ele deseja profundamente ser um artista, mas, primeiro, precisa vencer as forças que reprimem sua imaginação - as convenções da Igreja Católica, da escola, da sociedade. Nesta obra, Joyce apresenta o uso sistemático do monólogo interior - desde o primeiro capítulo somos introduzidos na mente de Stephen Dedalus e convidados a acompanhar seus pensamentos, reações e os processos psíquicos de sua consciência. Trata-se de um dos primeiros exemplos da técnica narrativa do fluxo da consciência. 'Um retrato do artista quando jovem' reflete a profunda relação de amor e ódio que o autor manteve durante toda a vida com sua terra natal, Dublin, e com a cultura que o formou.
Um Retrato do Artista quando Jovem Feb 23, '08 12:49 PM
para todos
Categoria: Livros
Gênero: Literatura & Ficção
Autor: James Joyce
Lá vou eu tentando (humildemente) fazer uma review de um dos dos principais livros da Lingua Inglesa.
Ele foi, na verdade, considerado o terceiro livro mais importante do século vinte.
Pra entendermos o que isso significa é preciso saber que esse Romance publicado em (1916) foi o pioneiro das técnicas que posteriormente seriam uiadas em Ulisses ( 1922) e que hoje são consideradas inovadoras no campo da ficção. Elas não apenas redefiniram fundamentalmente o Romance como gênero mas também expandiu os próprios limites da Lingua Inglesa.
Um Retrato do Artista quando Jovem é considerado por muitos um retrato do próprio autor em seus anos de juventude. O Romande é também o retrato do processo de maturidade do autor, um estudo sobre a vaidade e a rebeldia, e também um exame do ego adolescente.
Se eu fosse destacar os pontos principais do livro eu citaria
*Irlanda (como sempre nos trabalhos de Joyce) é a mola propulsora da obra
*Combinação - naturalismo e simbolismo - fato e mito
*Episódios dramáticos ligados por elos psicológicos ( fluxo de consciência)
*Evolução da linguagem infantil para a linguagem intelctual
*Desenvolvimento da consciência individual
*O papel do artista
*Stephen Herói -> Ulisses
O PERSONAGEM PRINCIPAL
Stephen Dedalus ( Estevão) - garoto sensível e pensativo que, apesar das dificuldades financeiras da família, estuda em uma escola jesuíta de prestígio e chega até a universidade. Em seu desenvolvimento, Stephen confronta-se com a religião, o nacionalismo, a família, a moralidade, e, finalmente, decide rejeitar todas as imposições da sociedade para viver livremente como um artista. Ele passa por quatro grandes transformações ao longo do romance:
1- Durante os primeiro anos em Clongowes
2-Quando mantém relações com um prostituta de Dublin
3- Quando escuta o sermão do Padre Arnall sobre a morte e o inferno.
4 - Quando se torna devoto da arte e da Beleza
rático, encontrar resenhas e críticas sobre a infância, o desenvolvimento, as crenças, as dúvidas, as questões de Stephen Dedalus, personagem principal de Um retrato do artista quando jovem, na internet. Essa é a primeira obra de ficção de James Joyce publicada em 1916 a partir de um ensaio que leva o mesmo nome.
Os principais pontos analisados geralmente são os fluxos de consciência e as passagens subjetivas do tempo, entretanto esquecem pequenos detalhes que tornam essa obra de James Joyce uma das mais queridas e acessíveis aos que não conhecem e aos entusiastas do autor.
Stephen Dedalus (alter-ego de Joyce) é um irlandês que busca o autoconhecimento através dos estudos, da convivência com amigos e rivais, e a formação católica. Adentramos nos pensamentos do personagem principal, apesar de nunca se referir na primeira pessoa, e é aí que damos de cara com o tal fluxo de consciência (os monólogos internos); como é narrado conforme a idade dele esbarramos em observações pueris como “A palavra era bonita: vinho” ou a contemplação sobre assuntos que parecem abranger coisas do tamanho do universo. Nessa partida encontramos a evolução da escrita, cada vez que atinge uma idade, a narrativa da vida de Stephen começa a se desenvolver, trazendo palavras novas, mais certezas do que dúvidas, mostrando que essa é uma obra de formação, com o personagem principal da infância até alcançarmos, juntos a ele, a maturidade.
Todavia, deixando de lado as questões de estética da escrita e da lingüística a obra carrega uma discussão interessante sobre beleza e arte (discutidas por Lynch e Stephen), onde vemos florescer cada vez mais o lado artístico do personagem. Essa discussão, inclusive, serve como metalinguagem sobre a personalidade de um escritor indo de encontro com a sua narrativa e logo após tornar-se algo fora da existência da própria escrita, atingindo seus leitores e os levando a lugares fora do alcance da imaginação.
A personalidade do artista passa para a narração mesma, enchendo, enchendo de fora para dentro as pessoas e a ação como um mar vital.
(…)
A forma dramática é atingida quando a vitalidade que encheu e turbilhonou em volta de cada pessoa enche todas as pessoas com uma força vital tal que ele ou ela acaba assumindo uma vida própria estética e intangível. A personalidade do artista, no começo um grito, ou uma cadência, ou uma maneira, e depois um fluido e uma radiante narrativa, acaba finalmente clarificando fora da existência, despersonalizando-se, por assim dizer.
Em outros pontos, e como boa critica ao estado católico e caótico que a Irlanda virou, Joyce opta por fazer pequenas alusões à religião (mesmo usando ela explicitamente como uma das bases da narrativa) de forma que ao mesmo tempo mostra a convivência do personagem com a religião, sobre servir como padre, sobre abdicar dos pecados; faz pequenas inserções de deboche com rituais do catolicismo (incluindo uma ironia ao batismo lá pelo quarto capítulo).
Quem quiser penetrar na mente de Stephen Dedalus não se arrependerá dessa viagem pelo consciente de um jovem com receios e vontades.
O artista, como o Deus da criação, permanece dentro, junto, atrás ou acima da sua obra, invisível, clarificado, fora da existência, indiferente, raspando as unhas dos seus dedos.
JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. São Paulo: Alfaguara Brasil, 2006. 272 págs.
JAMES JOYCE E A POLÍTICA
Dirce Waltrick do Amarante | Estado Crítico - Estado Crítico
“Eu acredito seriamente que vocês vão retardar o curso da civilização na Irlanda, impedindo o povo irlandês de dar uma boa olhadela em si mesmo no meu bem polido espelho”. [1] James Joyce
Nas últimas décadas do século XX, um número expressivo de estudos propôs-se a fazer uma leitura política da obra do escritor irlandês James Joyce (1882 – 1941). Assim, uma idéia freqüente em boa parte desses ensaios é a de que “…muitas das qualidades revolucionárias, das inovações lingüísticas e literárias de Joyce podem estar relacionadas com a sua compreensão, e nesta fundamentada, da expropriação ideológica, étnica e colonial”. Ao sustentarem essa opinião, esses textos apontam como “Joyce escrevia em oposição às pretensões culturais imperialistas britânicas do seu tempo.”[2]
Dentro do conjunto global dos estudos joycianos, todavia, esse tipo de análise que associa ideologia e estética, sondando certas “intenções do autor” representadas em sua escritura, ainda é relativamente nova. Caberia lembrar que os ensaios mais antigos sobre os romances de Joyce não enfatizavam – muitas vezes negavam – o aspecto político de sua obra: [3]
Durante a época da Guerra Fria, a academia era via de regra hostil a interpretações políticas de textos, mas há outras razões para a escassez desse tipo de análise no caso de Joyce. Primeiro, a recusa de Joyce em se mostrar até mesmo minimamente envolvido nas grandes questões políticas européias dos anos 1930 foi determinante para provar a teoria de que os textos joycianos, assim como o autor deles, eram apolíticos. A segunda maior razão para essa omissão pode ser atribuída à acusação, levantada pela esquerda nos anos 1930, e que recaía igualmente sobre Franz Kafka, de que sua arte era decadente. [4]
Somente no início dos anos setenta, particularmente na França, é que começaram a aparecer os primeiros estudos sérios e importantes devotados aos aspectos políticos da obra do escritor irlandês. Em 1975, Phillipe Sollers opinou o seguinte:
Acreditou-se ingenuamente que Joyce não tinha nenhuma preocupação política porque nunca disse ou escreveu nada sobre o assunto numa língua franca.A mesma velha estória: arte de um lado, opiniões políticas do outro, como se houvesse um lugar para opiniões políticas – ou para qualquer coisa que diga respeito a esse assunto. [5]
A posição política de Joyce é, todavia, visível tanto na sua ficção quanto nos ensaios críticos (ainda sem tradução para o português) que escreveu entre os anos 1896 (a data é incerta) e 1937, os quais incluem discussões sobre estética e política. Na opinião do estudioso irlandês Seamus Deane, aliás, “na Irlanda, ser um escritor era, num sentido muito específico, um problema lingüístico. Mas era também um problema político.“[6] Levar em conta, portanto, uma questão regional, a “questão irlandesa”, que é essencialmente política, parece hoje muito relevante para se “entender” esse “novo” Joyce, um Joyce, digamos, pós-colonialista, por oposição ao Joyce formalista, construído pela crítica do passado.
Aqui se faz necessário, então, um breve apanhado histórico. Convém lembrar que cerca de quarenta e cinco anos antes do nascimento de Joyce ocorreu “o maior desastre da história da Irlanda”, que os historiadores denominam a “Grande Fome” (1845 - 1848). Essa tragédia nacional dizimou quase metade da população do país e intensificou um antigo sentimento de rancor contra os colonizadores ingleses. Tanto no período da “Grande Fome” como no que se seguiu a ele, o governo britânico foi acusado pelos irlandeses de praticar uma “política cruel”, o laissez-faire : “isso fez com que uma multidão de pobres necessitados apelassem à Lei de Assistência Social, que recusou socorro quando a segunda crise total da batata ocorreu ... Nem durante a penúria nem nas décadas seguintes foi implementada qualquer medida de reconstrução ou melhoria agrícola, e essa omissão condenou a Irlanda ao declínio.”[7]
Joyce raramente menciona esse acontecimento na sua ficção, mas a “Grande Fome” é um tema recorrente nos seus ensaios críticos que, sob esse aspecto, podem explicitar o que fica muitas vezes subentendido na sua ficção. Cito, como exemplo, um fragmento do ensaio “Irlanda, Ilha dos Santos e Sábios” (1907) , texto em que o escritor discute os problemas da colonização inglesa na Irlanda:
Os ingleses agora menosprezam os irlandeses porque eles são católicos, pobres e ignorantes; contudo, não será fácil justificar tal menosprezo a algumas pessoas. A Irlanda é pobre porque as leis inglesas arruinaram as indústrias do país, especialmente a indústria da lã, porque a omissão do governo inglês nos anos da carestia da batata permitiu que a maior parte da população morresse de fome e porque, sob a presente administração, enquanto a Irlanda está perdendo sua população e os crimes são quase inexistentes, os juízes recebem salário de um rei e os funcionários do governo e aqueles nos serviços públicos recebem imensas somas para fazer pouco ou nada. [8]
Séculos antes da “Grande Fome”, contudo, a Irlanda já vinha sendo “espoliada” (termo que tomo emprestado aos historiadores e que o próprio Joyce usaria neste contexto) pelos ingleses.
Em 1160, após a chegada dos primeiros normandos ao país, comandados por Henrique II da Inglaterra [9], a Irlanda - uma nação celta, que possuía sua própria língua, lei e estrutura social desde o séc. VI a.C. - perdeu seu idioma nativo e sua cultura. Joyce aborda esse tema no já citado ensaio “Irlanda, Ilha dos Santos e Sábios”:
desde a invasão inglesa até os nossos dias, existe um intervalo de quase oito séculos, e se me detive mais demoradamente no período precedente, para fazê-lo entender as origens da índole irlandesa, não pretendo detê-lo, relatando as vicissitudes da Irlanda sob a ocupação estrangeira. Eu não farei isso especialmente porque naquele tempo a Irlanda cessou de ser uma força intelectual na Europa. As artes ornamentais, nas quais os antigos irlandeses se distinguiram, foram abandonadas e a cultura sagrada e profana caiu em desuso. [10]
Foi somente no final do século XIX, com o fortalecimento do nacionalismo[11] político, que ganhou força na Irlanda uma campanha pela independência do país. O movimento foi liderado por Charles Steward Parnell, conhecido como “the uncrowned king of Ireland” (“o rei não coroado da Irlanda”[12]). Dado curioso, Parnell era também patrono da Associação Atlética Gaélica, fundada em 1884 para promover os esportes irlandeses como forma de resistência política e cultural.
Entretanto, depois da queda política de Parnell – acusado, pelos ingleses, de ter-se envolvido com uma mulher casada, Katharine O`Shea - e da sua morte repentina, ocorrida em 1891, a luta pela independência do país perdeu o ímpeto e ficou esquecida por alguns anos. Esses fatos marcaram um novo período na história irlandesa, o da estagnação política. Essa experiência histórica foi descrita por Joyce em diferentes textos de ficção, como, por exemplo, no romance O Retrato do Artista Quando Jovem (1916), nos contos “Os Mortos“ e “Dia de Hera na Lapela” de Dublinenses (1914)[13], e, ainda, no romance Ulisses (1922). Segundo Michael MacCarthy Morrogh:
O maior romance do século XX, Ulisses, de James Joyce, transcorre em Dublin em 1904. Joyce escolheu essa data porque foi o ano em que ele e Nora Barnacle deixaram a Irlanda; mas a data também simbolizava um tempo em que nada demais estava acontecendo no cenário público. Dublin e a maior parte da Irlanda pareciam ter renunciado às causas nacionalistas e pouco se importavam com a depressão política.[14]
Alguns estudiosos afirmam ainda que a vocação literária do jovem Joyce teria se manifestado exatamente nesse período de “desilusão” nacionalista. Pouco depois da morte de Parnell, Joyce, então com nove anos, escreveu seu primeiro poema, intitulado “Et Tu, Healy”, em homenagem ao líder irlandês. Não há nenhuma cópia de “Et Tu, Heal”, mas se conhece uma declaração de Stanislaus Joyce, irmão do escritor, a respeito do poema. Segundo Stanislaus, o poema era “uma diatribe contra o suposto traidor, Tim Healy, que informou [o envolvimento de Parnell com Katherine O`Shea] à ordem dos bispos da igreja católica e se tornou um inimigo mortal de Parnell.”[15]
Caberia aqui mencionar que Charles Steward Parnell poderia ser associado a Humphrey Chimpden Earwicker, H.C.E., o protagonista de Finnegans Wake (1939), considerado por muitos críticos como uma das obras capitais do século XX. Como Parnell, H.C.E. é acusado de cometer um crime de natureza sexual: “haver-me havido com incavalheiridade imprópria oposto a um par de deliciosas serviçais” (FW 34. 18-19/ tradução de Donaldo Schüler). Além disso, tal como o líder irlandês, que foi acusado de mandar matar os líderes ingleses Lord Frederick Cavendish e Thomas Burke, no Parque Phoenix, também H.C.E. é acusado de envolver-se numa briga com um assaltante, ou com a polícia local, no mesmo parque.[16]
Marcando, porém, o fim do período de estagnação política, Arthur Griffith fundou em 1899 um novo partido, o Sinn Féin (“Nós mesmos”), que tinha por objetivo combater Westminster e criar um parlamento irlandês independente.
A história da Irlanda moderna teve início, contudo, segundo os historiadores, apenas em 1916, quando dois grupos militares, o “Republican Brotherhood”, liderado pelo poeta Pádraic Pearse, e “Citizens’Army”, comandado por James Connolly, tomaram posse de alguns pontos importantes de Dublin e proclamaram a independência da Irlanda. O movimento foi contido pelo exército britânico e seus dois líderes, Connolly e Pearse, foram executados num julgamento sigiloso. Apesar do insucesso dessa revolta, ela foi o primeiro passo de um movimento pela criação de um governo independente.
Esse e outros fatos históricos ocorridos na Irlanda parecem ter marcado para sempre a vida e a obra de James Joyce, que, muito embora tenha deixado o país ainda jovem, aos 22 anos, nunca se distanciou espiritualmente da sua terra natal, nem ignorou os problemas políticos que esta continuava a enfrentar: “o desenvolvimento de Joyce como um artista vai de uma realidade insular para uma riqueza cosmopolita, mas para acompanhá-lo temos que inverter a direção.”[17]
De acordo com os biógrafos do escritor, entretanto, Joyce nutria por seu país sentimentos contraditórios, indo da admiração à rejeição. Em 1909, dois anos depois de escrever o ensaio “Irlanda, Ilha dos Santos e Sábios”, um texto “nacionalista” [18], Joyce voltou a Dublin para uma rápida visita (nesta época o escritor morava em Trieste) e declarou o seguinte numa carta endereçada à mãe de seus filhos e futura esposa, Nora Barnacle :
Eu sinto orgulho em pensar que meu filho [...] será sempre um estrangeiro na Irlanda, um homem falando uma outra língua e educado numa tradição diferente.
Eu odeio a Irlanda e os irlandeses. Eles me olham na rua pensando que eu nasci entre eles. Talvez eles percebam meu ódio em meus olhos. Não vejo nada em nenhum lado, a não ser a imagem do sacerdote adúltero e seus criados e mulheres mentirosas e maliciosas [19]
Mas, de fato, Joyce nunca se separou da sua cidade natal, ao menos na sua imaginação, por isso Dublin parece estar sempre presente na sua obra ficcional: “se Dublin algum dia for destruída, ela poderá ser reconstruída a partir das páginas dos meus livros”[20], declarou o escritor na época em que escrevia Ulisses.
Concluindo o que expus acima, afirmaria, repetindo o que já disseram os estudiosos, que as opiniões políticas de Joyce não podem ser, todavia, “facilmente definidas pelas idéias que são mais familiares à nossa compreensão de sentimentos nacionais e posições políticas”.[21]
Ao compor sua obra, principalmente a última, Finnegans Wake, o escritor adotou uma linguagem indireta e parodiou eventos e personagens históricos numa dimensão global, criando, assim, uma história que é simultaneamente universal e local, com nomes que podem ser reconhecidos mundialmente, mas que se encontram num ponto particular do planeta, a Irlanda.
Não se pode esquecer ainda que, no final do século XIX e início do século XX, época em que Joyce começou a escrever suas ficções, o império britânico viveu o seu apogeu, o que parece ter gerado em parte da população inglesa um forte sentimento de superioridade racial sobre outros povos, e “especialmente sobre os irlandeses”, segundo apontam alguns pesquisadores, como, por exemplo, Vicent Cheng [22]:
A convicção de que a Pax Britannica realmente estaria a serviço dos melhores interesses do resto do mundo […] tendia a reforçar a presunção etnocêntrica de genialidade do povo anglo-saxão para regular suas vidas e as de outros povos [… ] todas as outras raças, em particular os celtas, requereram instituições altamente centralizadas ou autoritárias para evitar uma violenta revolta política e social.[23]
Essa situação política, entretanto, sempre mereceu o olhar atento do autor de Finnegans Wake. Em 1907, por exemplo, Joyce escreveu um ensaio crítico intitulado “A Irlanda no Tribunal”, cuja tradução integral ofereço a seguir (esse texto integra uma antologia de ensaios críticos de Joyce que estou preparando em português). Nele, o escritor discute o julgamento de um irlandês pela corte inglesa, numa pequena cidade do interior da Irlanda. Muito embora os membros da corte não falassem ou entendessem o idioma irlandês, nem o réu falasse inglês, o mesmo foi considerado culpado e condenado por um crime que até hoje não se sabe ao certo se ele realmente cometeu.
“A Irlanda no Tribunal” é uma crítica ao descaso com que o colonizador inglês tratava o povo irlandês e os problemas do seu país: “a imagem daquele velho estarrecido, um remanescente de uma civilização que não é nossa, surdo e emudecido diante de seu juiz, é um símbolo da nação irlandesa no tribunal da opinião pública..” [24]
A Irlanda no tribunal (1907) [25]
Alguns anos atrás houve um impressionante julgamento na Irlanda. Num lugar isolado, numa província do oeste, chamada Maamstrasna, um assassinato foi cometido.[26] Quatro ou cinco cidadãos, todos membros da antiga tribo dos Joyces, foram presos. O mais velho deles, o septuagenário Myles Joyce, era o principal suspeito. A opinião pública na época o supunha inocente e hoje o considera um mártir. Nem o velho, nem os outros acusados sabiam inglês. A corte de justiça teve que recorrer aos serviços de um intérprete. O interrogatório, conduzido pelo intérprete, foi às vezes cômico, às vezes trágico. De um lado estava o intérprete, excessivamente cerimonioso, do outro o patriarca de uma tribo miserável e pouco familiarizada com os hábitos civilizados, o qual parecia estupefato com toda a cerimônia judicial. O magistrado disse:
“Pergunte ao acusado se ele viu a senhora naquela noite.” A pergunta foi dirigida a ele em irlandês e o velho rompeu numa explicação confusa, gesticulando, suplicando aos outros acusados e ao céu. Então ele se acalmou, esgotado de seu empenho, e o intérprete dirigiu-se ao magistrado e disse:
“Ele disse não, ‘Vossa Excelência’”.
“Pergunte se ele estava nas proximidades naquele momento”. O velho começou novamente a falar, protestar, gritar, quase fora de si, aflito por não ser capaz de entender ou de se fazer entender, chorando de medo e terror. E o intérprete, mais uma vez, secamente:
“Ele disse não, ‘Vossa Excelência’”.
Quando o interrogatório terminou, o pobre velho foi declarado culpado e enviado a uma corte superior, que o condenou à forca. No dia em que a sentença foi executada, a praça na frente da prisão estava lotada, cheia de pessoas ajoelhadas, bradando orações em irlandês pelo descanso da alma de Myles Joyce. Contou-se depois que o carrasco, incapaz de se fazer entender pela vítima, chutou de raiva a cabeça do miserável homem, a fim de colocá-la na forca.[27]
A imagem daquele velho estarrecido, um remanescente de uma civilização que não é nossa, surdo e emudecido diante de seu juiz, é um símbolo da nação irlandesa no tribunal da opinião pública. Como ele, ela é incapaz de apelar para a moderna consciência da Inglaterra e de outros países. Os jornalistas ingleses atuam como intérpretes entre a Irlanda e o eleitorado inglês, o qual lhes dá ouvidos ocasionalmente e termina se aborrecendo com as intermináveis queixas dos representantes nacionalistas que passaram a fazer parte de seu Parlamento, conforme imagina, para romper sua ordem e extorquir dinheiro. No exterior não se faz nenhuma menção à Irlanda exceto quando irrompem as rebeliões, como as que fizeram a agência dos Correios e Telégrafos estremecer nestes últimos dias.[28] Lendo superficialmente as informações enviadas de Londres (as quais, embora careçam de mordacidade, têm algo do laconismo do intérprete mencionado acima), o público imagina os irlandeses como salteadores, com caras deformadas, vagando pela noite com o objetivo de arrancar a pele de todo Unionista. E o verdadeiro soberano da Irlanda, o Papa, recebe essas notícias como uma matilha de cães na igreja. Já debilitados pela sua longa jornada, os apelos estão quase sem força quando chegam à porta de bronze. Os mensageiros do povo que nunca renunciou à Santa Sé no passado, o único povo católico para o qual fé também significa o exercício da fé, são rejeitados em favor dos mensageiros de um monarca, descendente de apóstatas, que solenemente abjurou no dia de sua coroação, declarando, na presença de seus nobres e do povo, que os rituais da Igreja Católica Romana eram “superstição e idolatria”.
* * *
Existem vinte milhões de irlandeses espalhados pelo mundo todo. A Ilha Esmeralda[29] contém apenas uma pequena parte deles. Mas, ao refletir sobre isso, enquanto a Inglaterra converte a questão irlandesa no centro de toda a sua política interna, usando de muito bom senso para resolver rapidamente as questões mais complexas das políticas coloniais, o espectador não pode deixar de perguntar por que o Canal de St. George constituiu um abismo mais profundo que o oceano entre a Irlanda e o seu orgulhoso dominador. Na verdade, a questão irlandesa ainda hoje não está resolvida, depois de seis séculos de ocupação armada e mais de cem anos de legislação inglesa, a qual reduziu a população da infortunada ilha de oito para quatro milhões, quadruplicou os impostos e tornou mais complicado o problema agrário.
Realmente, não há problema mais complexo do que este. Os próprios irlandeses quase não o compreendem, e os ingleses menos ainda. Para outros povos é uma peste negra. Mas, por um lado, os irlandeses sabem que essa é a causa de todos os seus sofrimentos e, por essa razão, para solucioná-lo, adotam muitas vezes métodos violentos. Por exemplo, vinte anos atrás, vendo-se reduzidos à miséria pelas brutalidades dos grandes proprietários de terra, recusaram-se a pagar seus arrendamentos de terra e obtiveram de Gladstone soluções e reformas. Hoje, ao ver que os pastos estão repletos de gado bem alimentado, enquanto um oitavo da população carece de meios de subsistência, eles levam o gado das fazendas. Irritado, o governo liberal planeja voltar a utilizar as táticas coercitivas dos conservadores e, já há várias semanas, a imprensa de Londres vem dedicando inumeráveis artigos à crise agrária, a qual, eles dizem, é muito séria. Publica notícias alarmantes das revoltas agrárias, as quais são, então, reproduzidas por jornalistas no exterior.
Não me proponho a fazer uma exegese da questão agrária irlandesa nem relatar o que acontece atrás dos bastidores da política de duas caras do governo. Mas acredito que seja conveniente fazer uma modesta retificação dos fatos. Quem quer que tenha lido os telegramas lançados de Londres fica convencido de que a Irlanda está passando por um período de criminalidade fora do comum. Um julgamento errôneo, muito errôneo. Há menos criminalidade na Irlanda do que em qualquer outro país da Europa. Na Irlanda não há nenhum submundo organizado. Quando um desses incidentes que os jornalistas parisienses, com ironia atroz, chamam “idílios vermelhos”, ocorre, todo o país é por ele abalado. É verdade que nos últimos meses houve duas mortes violentas na Irlanda, mas pela mão das tropas britânicas em Belfast, onde os soldados atiraram inesperadamente numa multidão indefesa e mataram um homem e uma mulher. Houve ataques a gado, mas nem sequer ocorreram na Irlanda, onde o povo se contentou em abrir os estábulos e perseguir o gado pelas ruas por muitas milhas, mas em Great Wyrley , na Inglaterra, onde, durante seis anos, criminosos bestiais e enlouquecidos pilharam o gado, a tal ponto que as companhias de seguro inglesas não irão mais segurá-los. Cinco anos atrás um homem inocente, agora em liberdade, foi condenado a trabalhos forçados para satisfazer a indignação pública. Mas, mesmo durante o tempo em que esteve preso, os crimes continuaram. E, na última semana, dois cavalos foram achados mortos, com os habituais golpes no abdômen inferior e as vísceras espalhadas no pasto.
James Joyce
O mundo que Jobs ajudou a construir
6th outubro
2011
written by Paulo Nogueira
Retrato do artista quando jovem
Steve foi chorado como um amigo por milhões de pessoas no mundo inteiro.
Isso é o suficiente para mostrar seu tamanho, seu impacto na vida das pessoas. Desde Ayrton Senna uma morte não era tão universalmente sentida. O que torna tudo ainda mais extraordinário é que se tratava de um empresário riquíssimo, um tipo que em geral é malvisto. Balzac escreveu que por trás de toda grande fortuna existe um crime, e isso reflete o imaginário popular. Jobs não foi alcançado pelo estigma antibilionários.
É que Jobs jamais perdeu o ar de garoto rebelde, de anticonformista. De alguma forma, ele nunca pareceu envelhecer. Aos olhos do público, se conservou puro como um garoto sonhador, um quase santo.
Sua maior contribuição foi ter tornado o computador amigável ao público em geral. Durante muito tempo o computador foi uma exclusividade de fanáticos, unidos num gueto. Como líder, tinha uma causa e sabia unir as pessoas em torno dela. Era mais um pregador do que um chefe.
Jobs representou como ninguém o grande paradoxo do mundo moderno: as transformações trazidas pela tecnologia. Tudo mudou – mas, este o paradoxo, não necessariamente para melhor. Dizer, como a Apple fez em seu comunicado, que Jobs melhorou muito o mundo é uma licença poética.
A tecnologia avançada prometia tornar nossa vida mais agradável. Trabalharíamos menos, desfrutaríamos mais do ócio etc. Mas o que aconteceu foi exatamente o contrário. Graças a ela, consultamos o email profissional quando acordamos no meio da madrugada. Trabalhamos nas férias e nos finais de semana. Teclamos no trânsito e quando estamos numa mesa com amigos.
A conexão em regime de 24 x 7 x 365 vai criando uma humanidade alucinada, ansiosa, que terminará teclando desconexadamente no manicômio ou se entupindo de ansiolíticos, ou ambos.
Steve Jobs é o ícone do impacto que a tecnologia tem sobre a nossa vida. A despeito de toda a pirotecnia, a tecnologia não acabou com a miséria, com a desigualdade, com as guerras. E nos tornou, como pessoas, ainda mais infelizes.
Ele próprio. Leio um artigo do escritor e jornalista americano Walter Isaacson. Isaacson conta que Jobs o procurou, já com o diagnóstico do câncer, para convidá-lo a escrever sua biografia. O último encontro dos dois foi na casa de Jobs. Ele já tinha se instalado no andar de baixo porque não tinha força para subir a escada. Isaacson quis saber por que ele decidira fazer o livro. Jobs respondeu que era para os filhos. “Fiquei pouco com eles, e queria que eles soubessem por quê”.
Duvido que as crianças lidem bem com o fato de que foram trocadas pela empresa e preteridas por outros filhos como o iPhone e o iPad. Mas terão dinheiro suficiente para procurar os psicanalistas mais caros, no esforço épico de preencher um buraco impreenchível. Admirável mundo novo. Aspas, naturalmente.
Gostaria de dizer que o legado de Jobs é maravilhoso, mas não vejo razões objetivas para isso, e lamento porque gostava imensamente de seu estilo anticonvencional.
Tags: Apple, Steve Jobs
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internet, vida moderna
Viajando no Instagram
4th outubro
2011
written by Paulo Nogueira
Leitura na grama de Parsons Green, em Londres
Tenho me divertido no Instagram, o aplicativo do iPhone em que você compartilha fotos. Você viaja pelo mundo apenas pressionando o dedo na tela.
Sou um fotógrafo tão entusiasmado quanto ruim. Gosto de tirar fotos, sobretudo de gente nas cidades. Cenas urbanas.
Decidi fazer uma série de fotos no Instagram dedicada à leitura. Aos leitores, especificamente. Fotogrado gente lendo em Londres nos parques, nos ônibus, no metrô, onde quer que seja. Poucas coisas são são bonitas como o ato de ler. A leitura inspira, eleva, ilumina.
É fácil fazer uma série daquelas em Londres. Existe aqui o hábito da leitura. Seria diferente no Brasil, o que é uma pena.
Lembro uma vez que fui a Aruba com minha ex-mulher. Conhecemos um casal de brasileiros de Goiás, dois velhinhos sorridentes e simpáticos. Numa manhã em que fui à piscina do hotel, todas as cadeiras estavam ocupadas, e cada pessoa lia um livro. Em geral eram bestsellers, próprios para férias por exigirem o grau mínimo de concentração. Todos na piscina se dedicavam a virar páginas enquanto tomavam o sol do Caribe.
Menos.
Bem, menos o casal brasileiro. Eles não faziam absolutamente nada. Me perguntei, na hora, no que eles estavam pensando. Filosofando?
O dia em que você for a uma piscina no Brasil e encontrar muita gente com um livro, pode ter certeza: evoluímos.
Tags: Instagram, iPhone, leitura
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Londres, internet, vida moderna
A morte do homem que inventou o ebook
23rd setembro
2011
written by Paulo Nogueira
Hart
Quase toda vez que baixo um livro no iBooks vejo uma assinatura que acabou se tornando familiar: Project Gutenberg. Desenvolvi um sentimento de admiração e gratidão, tantas as leituras que o Gutenberg tem me proporcionado.
Nunca soube quem estava atrás desse projeto até ler, estes dias, um obituário.
Michael Hart, o fundador, americano de Washington, morreu, aos 64 anos.
Poucos o conheciam, e no entanto ele é uma daquelas poucas pessoas de quem se pode dizer, sem cair no ridículo, que mudaram o mundo para melhor. Ele inventou o ebook, o livro eletrônico. Jamais procurou a notoriedade e nem o dinheiro: morreu pobre e reconhecido apenas por umas poucas pessoas.
Hart tinha um lema atribuído a Bernard Shaw, segundo o qual são as pessoas insanas que verdadeiramente empurram o mundo adiante ao fazer coisas pretensamente absurdas.
Como ele mesmo fez.
Em 1971, foi concedido a ele um tempo ilimitado num computador de uma universidade. Naquele tempo, computador era uma raridade. Era 4 de julho, Dia da Independência dos Estados Unidos. E então ele decidiu digitar o texto da declaração de independência, que seria compartilhado por um punhado de amigos que estavam conectados àquele computador.
Nascia o ebook.
Nunca mais ele deixou de reproduzir textos. Hart digitou sozinho, inicialmente, livro após livro. Depois, voluntários se juntariam a seu esforço para disseminar conhecimento. Hoje, o Projeto Gutemberg tem um acervo de quase 40 000 livros eletrônicos.
Hart foi quem viu, antes que os outros, que a verdadeira vocação do computador era espalhar conhecimento, e não fazer cálculos. “A recompensa do conhecimento é o próprio conhecimento”, dizia. Numa outra grande frase, lembrou: “As pessoas não notaram que os livros eletrônicos são a única coisa que poderão ter ilimitadamente além do ar.”
Foi um herói da humanidade.
Descanse em paz.
Tags: Michael Hart, Project Gutenberg
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cultura, história, internet
Wikiencrenqueiro
22nd setembro
2011
written by Paulo Nogueira
Ele briga com todo mundo
Julian Assange pode ser acusado de muitas coisas. Mas menos de não ser encrenqueiro.
Assange parece brigar com todo mundo. Pouco tempo atrás, ele brigou com o jornal Guardian – do qual seu Wikileaks fora parceiro – em torno dos telegramas confidenciais das embaixadas americanas. Já tinha brigado antes com o New York Times, outro antigo aliado.
Agora ele arrumou encrenca com a Canongate, editora inglesa que pagou a ele um adiantamento considerável – seis dígitos, se comenta – para publicar sua biografia autorizada. A editora gravou 50 horas de conversa com ele, e um escritor deu texto final ao material.
Acontece que Assange quis cancelar o contrato.
A editora não recebeu o adiantamento de volta. Também já tinha se comprometido com outras editoras em diversos países para a publicação da biografia em diversas línguas. Sem contar que foi gasto dinheiro para entrevistar Assange e depois escrever, literariamente, seu relato.
A Canongate então foi adiante. Decidiu lançar o livro com ou sem o apoio de Assange. Que ficou furioso.
Li trechos do livro, publicados pelo jornal Independent. Gostei. Assange evidentemente nega que tenha estuprado as duas suecas que o acusam de agressão sexual. Ele diz que uma delas ficou furiosa porque ele não atendeu o celular depois de ter passado a noite com ela em sua cidadezinha, a uma hora de Estocolmo. Custou caro não ter respondido ao telefonema, diz ele. Sobre a outra mulher, ele lembra que num curto espaço de tempo ela mudou sua opinião radicalmente sobre ele. Chamara-o publicamente em seu twitter de “o homem mais interessante do mundo”, e logo depois estava dizendo que ele é um homem que não sabe ouvir um não.
Admiro Assange. Ele já conquistou um lugar de honra na história do jornalismo investigativo com o Wikileaks. Desde os velhos barões da imprensa da segunda metade do século 19 não aparecia ninguém ns mídia que influenciasse tanto o mundo como Assange.
Gênio.
Mas como quase todo gênio não consegue viver pacificamente com ninguém exceto talvez por ele mesmo. Mas mesmo aí há boas razões para dúvidas.
Tags: Assange, WikiLeaks
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Jornalismo, internet
O real milagre de Steve Jobs
25th agosto
2011
written by Paulo Nogueira
Sobrevivente
“Sempre disse que quando já não pudesse cumprir meus deveres como presidente-executivo da Apple, eu seria o primeiro a informá-los. Infelizmente, esse dia chegou. Renuncio aqui ao cargo de executivo-chefe da Apple.”
Assim começa a carta com a qual Steve Jobs, aos 56 anos, se despede hoje de suas funções executivas na Apple. Sobre sua extraordinária trajetória na empresa, não há o que dizer. Jobs fundou a Apple ainda garoto, depois foi chutado da empresa por acionistas que tinham colocado dinheiro nela e voltou, já maduro, para ressuscitar um negócio que parecia morto e transformá-lo na maior, mais inventiva e mais bem-sucedida companhia da tecnologia. Produtos como iPod, iPhone e iPad são venerados por consumidores em escala global.
Mas o que mais me chama a atenção em Jobs está ligado não à tecnologia, mas à saúde.
O verdadeiro milagre que ele operou não foi na Apple. Foi, sim, na sobrevivência a um tipo de câncer que devasta e mata rapidamente: no pâncreas. Meu pai morreu disso. Não há câncer mais cruel e mais letal. Ele tem a selvageria, a implacabilidade e a rapidez de Mike Tyson na primeira fase.
Todas as estatísticas sobre o câncer no pâncreas colocariam já faz tempo Jobs no cemitério. Mas ele resiste – ainda que combalido. Teve energia mental para se submeter a um transplante de fígado em decorrência da doença.
E está vivo, recolhendo as merecidas homenagens ao se afastar do comando de uma empresa que não é apenas admirada, mas amada — um símbolo da inovação, da honestidade e do sucesso.
Tags: Apple, Steve Jobs
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economia, internet
O usuário do Explorer é mais burro?
3rd agosto
2011
written by Paulo Nogueira
Disseram que era para burros
Sobre as vantagens competitivas do jornalismo digital sobre os demais muito já se falou.
A notícia chega mais rápido. Você escreve no tamanho que achar mais conveniente. Você pode agregar vídeos aos textos.
Isso e muito mais.
Mas certas coisas vêm nos lembrar uma desvantagem formidável do jornalismo digital: a leviandade nascida exatamente da rapidez.
Acaba de acontecer um fato que mereceria uma análise de todos os editores digitais. É uma besteira de proporções épicas.
A internet foi mundialmente varrida, nos últimos dias, por uma pesquisa fascinante. Era, pelo menos, o que parecia. Segundo ela, os usuários do navegador Internet Explorer teriam QI mais baixo do que o dos adeptos dos demais.
A conclusão era fruto, segundo foi divulgado ubiquamente, de um site de pesquisas digitais de origem canadense chamado ApTiquant. O site teria enviado testes de inteligência a internautas e extraído do resultado a informação sobre a deficiência da turma do Internet Explorer.
Grandes marcas jornalísticas divulgaram o trabalho da ApTiquant: CNN, BBC e Mashable, para ficar em três.
Mas.
Mas era um engodo. O site foi montado para atrair otários, basicamente. O design foi copiado. Você entra ali e encontra exatamente a notícia da enquete de inteligência entre os usuários de diferentes navegadores.
Não se reconstituiu ainda este desastre jornalístico. Alguém deu o furo e a manada digital seguiu. As defesas contra fraudes no jornalismo digital são muito mais frágeis. Você enfrenta a pressão dupla do tempo e da concorrência.
A BBC deu? Ah, eu, CNN, tenho que dar. Eles com certeza checaram. É mais ou menos assim que as coisas funcionam. Ou não funcionam. Por isso você pode ter desastres jornalísticos como este em que foi engolfado o Explorer.
O que está por trás da trapaça?
Ninguém sabe ainda.
O que é certo é que a confiabilidade da mídia tradicional ainda é muito maior que a da mídia digital – e isso de certa forma compensa suas conhecidas e proclamadas desvantagens em relação ao que se faz na internet.
Tags: ApTiquant, Internet Explorer
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Jornalismo, internet
A gargalhada de Chico
5th julho
2011
written by Paulo Nogueira
Video do dia: Comentários na Internet from Chico Buarque: Bastidores on Vimeo.
Nunca tinha visto Chico rir assim.
Gargalhar. Em público pelo menos, ele sempre foi contido.
Se não houvesse áudio, eu diria o seguinte para ele: “Pelo amor de Deus, me conta essa piada!”
Bom, prmeiro a essência. Chico teve um contato – muito tardio, me parece – com uma das piores coisas da internet: a agressão livre, gratuita e muitas vezes anônima. É fácil formar correntes de insultos. É como se um xingamento chamasse outro, e outro, e outro. O assunto discutido sempre se perde no meio das ofensas.
Vivi isso algumas vezes, e já relatei aqui.
Grandes sites resolveram esse problema. A BBC, por exemplo. Ela insta sempre seus leitores a se manifestar, Quer saber o que eles pensam sobre temas que vão do extremismo islâmico a Wimbledon.
Mas.
Mas, exatamente para evitar a destruição das discussões, a BBC exige que você se cadastre. É o primeiro passo para afugentar desordeiros. Depois, submete os comentários a uma moderação. Se a manifestação infringe as regras básicas da civilidade – com palavrões, racismo etc – simplesmente não é publicada.
Adotei, no diário, a moderação, depois de sucessivas agressões pessoais que nada tinham a ver com os assuntos debatidos. Os nomes eram inventados. Havia gente se aproveitando de minha liberalidade para me atacar.
Como disse anteriormente, o tema em debate desaparecia. Era um desrespeito não apenas a mim, mas a todos os interessados nas discussões.
Agora, minha impressão sobre a reação de Chico. Como quase todo mundo da minha geração, tenho uma imensa admiração por ele. Acho-o o maior compositor da história da MPB, além de um excelente cantor subestimado com sua voz triste e de menino.
Mas.
Sua risada me pareceu mais nervosa que relaxada. Bem mais.
Por trás dela, me ficou a sensação de que Chico viu uma coisa feia – e embalou o desagrado com uma gargalhada para mim inédita e quase histérica.
Tags: Chico Buarque, Chico sobre a internet
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internet
Ler livros no iPad ou no papel?
25th junho
2011
written by Paulo Nogueira
No vôo, com minha caçula Camila, os dois lendo livros -- de papel
Ler livros no papel ou no iPad?
Coloquei outro dia esta questão no Facebook, e despertou um debate revelador.
Minha sobrinha Júlia, de 23 anos, imadiatamente respondeu: iPad. E argumentou que é uma leitura ecologicamente mais “sustentável”.
Árvores não são derrubadas para a produção de papel.
Minha amiga Marília, que marcou época no RH da Abril com seu bom senso competente e suave, retrucou, enfática: “Livro sempre!”
Assim, com exclamação.
Quanto a mim, fico mais perto de Júlia do que de Marília nesta questão – a despeito de meu enorme apego a livros tal como os conheci.
As vantagens do livro no iPad – ou mesmo no celular, onle leio Os Possessos com facilidade e deleite – são muito grandes para serem ignoradas no correr dos dias.
Vim lendo Le Carré em inglês no avião que me devolveu a Londres. O último dele, “Our Kind of Traitor”. Le Carré é um escritor sofisticado. Um dos maiores romancistas vivos, certamente. Ninguém descreveu o mundo da espionagem na Guerra Fria como ele.
As palavras que não entendo, que faço com elas? Pulo e pego o sentido. No iPad, posso com os dedos destacá-las e ver seu significado no dicionário. Um link me transporta para o Google ou para a Wikipedia, se necessário para a compreensão de alguma passagem. A volta ao livro acontece com um simples clique.
Não vou falar na facilidade que é adquirir livros em sua cama ou poltrona também com um simples clique, porque visitar livrarias é um imenso prazer, você tomado por aquele mar de letras e capas.
Mas destaco outras virtudes laterais. A luz da tela dispensa abajur, por exemplo. Muitos casamentos podem ser poupados assim.
No avião, ontem. Na madrugada, para ler eu teria que acender uma luz que, todos sabemos, é individual sem ser individual. Ela parece ir direto para o rosto de seus vizinhos.
O iPad os poupou. Quer dizer, me evitou o dilema: leio ou, para ser um bom camarada, medito ou conto carneirinhos na escuridão transatlântica do avião?
Não dá para competir.
O futuro da leitura está no iPad ou aparelhos similares, apesar da paixão pelo papel que move minha amiga Marília e tantas, tantas pessoas, entre as quais eu.
Tags: iPad, livros de papel
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internet, vida moderna
“Você não é jornalista?”
6th junho
2011
written by Paulo Nogueira
Numa visita ao Stamford Bridge, estádio do Chelsea
“Você não é jornalista?”
Estou em Cumbica, na esteira que traz as malas de Londres. Vejo à minha frente, impaciente, Brad Gilbert, antigo tenista e, depois, treinador de jogadores como Agassi e comentarista de tevê. Presumo que estivesse em Roland Garros , mas não faço a menor idéia do que o trouxe a São Paulo.
“Sou.”
Já fui confundido algumas vezes com um jornalista que participa de debates esportivos no Sportv. Preparei-me para dizer “não” à próxima pergunta.
“Você não é o cara do Diário do Centro do Mundo?”
Uau. Me pegou de surpresa. Jamais imaginei este tipo de cena. Aquiesci.
“Nunca ninguém escreveu sobre a mídia como você, cara. Os bastidores. Essas coisas todas.”
Agradeço.
Ele me conta que está morando e estudando em Londres. MBA. Tem uns 30 anos, e veio passar uns dias em São Paulo. Combinamos tomar umas pints – cervejas – quando estivermos, ambos, em Londres de volta.
Ele tem uma ligação com a Fundação Dom Cabral, que conheci bem em meus anos executivos na editora Abril. A fundação organizava cursos de gestão. Valim, dela, rosto típico de professor em seus óculos de míope, foi um dos moderadores mais competentes que vi na vida. Adotei uma prática dele. Quando muita gente num encontro pedia a palavra, ele anotava os nomes numa lousa, um a um. E dava o microfone pela ordem. Isso evitava o caos de manifestações cruzadas.
Peço a ele que envie um abraço a Valim.
“Não para”, ele me diz.
Não vou parar.
Tags: Diário do Centro do Mundo
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Jornalismo, internet
The Daily
8th fevereiro
2011
written by Paulo Nogueira
Se você está na mídia convém prestar atenção nos movimentos de Rupert Murdoch, dono da News Corp.
Muita.
É um empresário extraordinariamente agressivo. Australiano, fez de um tablóide um império mundial. Passou pela Inglaterra, onde é dono do Times e do Sun, e hoje está nos Estados Unidos com sua segunda mulher, uma chinesa de fazer monge tibetano dar uma pausa num mantra.
Sua Fox News é uma espécie de voz da direita americana.
Murdoch já vai se encaminhando para os 80 anos, e é interessante vê-lo na internet. Murdoch aposta na hipótese mais do que discutível de que o internauta no fim vai acabar pagando pelas notícias. Não uma fortuna, é verdade, mas uma pequena quantia que tem sido chamada de micropagamento. Um dólar por semana, por exemplo.
O site do Times caiu vertiginosamente em audiência depois que foi fechado. Tem hoje menos de 15% da frequência anterior.
Mas Murdoch persiste e o mundo observa, fascinado.
Seu último grande lance foi o lançamento do The Daily (O Diário), um jornal exclusivo para o iPad. Já o baixei no meu, e minha impressão é bem positiva. Murdoch enxerga o potencial de iPads nos Estados Unidos. Segundo ele, em 2011 serão 11 milhões. É para este mercado que ele está lançando o The Daily, em que foram investidos 80 milhões de dólares.
Num primeiro momento, é gratuito. Para degustação, como se fala no jargão jornalístico. Depois, quem quiser tê-lo terá que pagar cerca de 1 dólar por semana. Pelos cálculos de Murdoch, com uma carteira de assinantes de cerca de 500 000, mais publicidade, o The Daily se tornará lucrativo.
Há uma redação exclusivamente dedicada ao novo jornal.
Se Murdoch reproduzirá na nova mídia o extraordinário sucesso que teve e tem na velha, é uma incógnita.
Mas que ele vem se mexendo para atravessar a ponte que leva ao futuro vem.
Tags: iPad, Murdoch, The Daily
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Jornalismo, internet
Por que Assange não vai levar o Nobel da Paz
5th fevereiro
2011
written by Paulo Nogueira
Merecia levar mas não vai
E eis que Julian Assange, do Wikileaks, é indicado para o Nobel da Paz por um político da Noruega.
É um gesto meramente simbólico. É simplesmente impossível Assange ser premiado. Não apenas porque enfrenta uma questão jurídica complexa na Suécia, a pátria do Nobel, como porque a influência americana na premiação é enorme.
Se você olha a lista dos homens que ganharam o Nobel da Paz tem vontade de rir e vomitar ao mesmo tempo. Theodore Roosevelt, um presidente americano que jamais conseguiu lidar com o fato de seu pai ter evitado se alistar numa guerra pagando outro homem para lutar em seu lugar, foi Nobel da Paz. A covardia paterna foi tão dura para Roosevelt que ele compensou-a depois como presidente dando aos Estados Unidos um caráter brutalmente bélico.
Roosevelt dizia que uma nação que fica em paz muito tempo perde a virilidade, e se gabava de ter matado com as próprias mãos um inimigo numa batalha.
Obama – a grande decepção planetária deste início de século – também levou o Nobel da Paz quando tudo que fez por ela foi mandar bombas para o Oriente Médio e desmoralizar celeremente as esperanças de uma nova atitude americana diante do mundo.
E enquanto presidentes americanos vão ganhando o prêmio gente como Ghandi é desprezada.
Assange não é Ghandi, mas se alguém tem feito alguma coisa para melhorar o mundo é ele com o Wikileaks. Quem teme o Wikileaks são governos e corporações corruptas. O vídeo que mostra soldados americanos num helicóptero matando por engano gente nas ruas do Iraque – o primeiro grande feito de alcance mundial do Wikileaks – é simplesmente histórico. É um manifesto extraordinário contra a guerra.
Nenhuma publicação – New York Times, Washington Post etc – fez nada parecido em décadas em termos de alcance e repercussão. Daí, em boa parte, o ressentimento que muitos jornalistas da “elite”, como o editor executivo do NY Times Bill Keller, guardam de Assange. É que eles parecem nanicos diante do que o Wikileaks vem fazendo.
O forte de Assange é o idealismo. Não o idealismo romântico, mas o idealismo prático de quem faz acontecerem coisas para mudar a situação.
O fraco, sabemos, são as mulheres.
Mas isso não é motivo para ele não levar o Nobel da Paz. Ele será ignorado pelor organizadores apenas porque contraria os interesses americanos – ainda poderosos, apesar do declínio do império.
Tags: Assange, Nobel da Paz, WikiLeaks
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Jornalismo, internet
Sobre o iPad
4th fevereiro
2011
written by Paulo Nogueira
Camilla gosta de papel
“Gosto de papel.”
Camilla Tebet é uma jovem literata de Ribeirão Preto. Lê com volúpia. Tem um blogue no qual coloca lírica e neuroticamente suas angústias de mulher atrapalhada contemporânea. Escreveu agora um romance e enviou-o a mim para que o avaliasse. “Estou cansada de escrever para mim mesma”, diz.
Como sei o quanto ela gosta de ler, recomendo-lhe que compre um iPad. Você tem ao mesmo tempo uma biblioteca e uma livraria nas suas mãos, sem contar uma banca de jornais e revistas com títulos do mundo todo.
Os clássicos são gratuitos. Você os baixa em segundos. Quase todos estão ainda em inglês. Poucos em português. Mas este não é um problema para Camilla. Ela morou alguns anos na Inglaterra, e foi casada com um sul-africano com o qual falava em inglês e no qual uma vez, em Ribeirão, apliquei uma memorável surra no pingue-pongue numa de minhas raras viagens que eu classificaria de simplesmente perfeitas, tanto que tenho dela uma lembrança quase que minuto a minuto.
Ela rejeita minha sugestão de comprar o iPad com uma declaração de amor ingênua, romântica e ludita ao papel. Ora, todos amamos o papel. Mas isto não é razão para ignorar o iPad.
O problema de Camila, aqui, é o preconceito.
Qual a diferença entre ler A Casa das Bonecas no papel ou na tela do iPad? Ou os romances de Jane Austen dos quais ela gosta tanto?
O conteúdo é o mesmo. A tela do iPad é excelente para a leitura. Você pode fazer os ajustes que quiser.
Fora vantagens nada desprezíveis. Você não precisa de abajur quando vai ler à noite na cama. A luz da tela é suficiente. Isso pode evitar muitos desgastes conjugais. Cônjuges de leitores podem ficar irritados com a luz do abajur, todos sabemos. O abajur pode matar casamentos tanto quanto a impotência, a flatulência, o adultério ou, simplesmente, o tédio. Você também não tem que marcar a página em que está dobrando-a criminosamente ou colocando um papel que sempre some. No iPad, o lugar em que você para a leitura fica marcado.
A facilidade com que você encontra livros raros deve ser contada também. Onde eu acharia a “História da Inglaterra”, de David Hume, ou “Um Episódio de Amor”, de Zola? Ou as considerações divertidamente brilhantes de Dickens sobre Charles I, o rei inglês que se indispôs com o Parlamento e acabou sem a cabeça em meados do século XVII, na primeira revolução burguesa da humanidade? Ou o obituário em que Adam Smith fala de Hume como o maior exemplo de caráter num mundo dominado pela fragilidade humana?
Camilla gosta de papel.
Eu também.
Mas, mais do que de papel, gosto do conteúdo de bons livros.
E isso o iPad traz numa quantidade comovente.
O resto é silêncio, como escreveu Shakespeare.
Tags: Cammila Tebet, iPad
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internet, vida moderna
Para que servem o Facebook e o Twitter
23rd dezembro
2010
written by Paulo Nogueira
Se eu estivesse tuitando não teria feito este gol sensacional
Para que serve o Facebook? E o Twitter?
Neste final de 2010, a resposta mais factível que me ocorre é que servem para duas coisas. Primeiro, para tornar seus donos bilionários. Segundo, para ocupar desocupados, preencher mentes esvaziadas.
O ponto um é óbvio. Basta ver o patrimônio dos seus criadores.
Vamos então à segunda questão. No Facebook e no Twitter você parece estar em movimento. Parece. Ou mais precisamente: numa praça do interior conversando com os que passam. Não está fazendo nada produtivo. Está matando o tempo.
Notícias, o chamado hard news, você obtém em outras fontes. Se você quer conversar com algum amigo, o email é mais adequado. Quanto a conversar com desconhecidos, minha avó Cotinha dizia que não é recomendável.
Lembro que um editor da Time escreveu que a maior façanha do Twitter é fazer que ele, um redator caro, escrevesse de graça.
É verdade.
Ou parte verdade.
Porque a recompensa não é monetária. Ela se dá no terreno da vaidade. Você acredita que tem mesmo centenas, milhares de seguidores. Que é um novo guru cibernético.
O problema é que seus seguidores não ouvem você. Você pode pregar a favor do Wikileaks ou contra. Ninguém está nem aí. Seus seguidores só fingem que seguem você. Ou alguém pode ter dezenas, centenas de gurus quando os ouvidos são apenas dois e a mente uma?
O twitter faz marola, é verdade. Mas só isso.
Os tuitadores gritaram para Galvão calar a boca. Foi um alarido. Ele calou? Mundialmente, houve um furor em relação às eleições iranianas. E daí?
Diziam que o Twitter revolucionaria a política, depois que Obama o usou em sua campanha. Aí se soube que quem escrevia os tuítes eram fâmulos, não ele. E Serra? Tantos seguidores, um tuitador compulsivo, e finalmente uma surra memorável de uma candidata que jamais concorrera a nada. Que ele ganhou?
Vejo bocós como Luciano Huck e Bonner deslumbrados com o número de seguidores. Que dinheiro eles fazem com isso? Huck talvez imagine vender alguma coisa em algum momento. Bonner me parece o caso de um locutor que quer provar que mais que uma voz na televisão.
E as pataquadas filosóficas e bilíngues de Paulo Coelho, retuitadas em profusão? E as do Dalai Lama? De auto-ajuda, não basta o entulho que toma as livrarias?
Não.
Realmente não consigo ver outra serventia para o Twitter e o Facebook que não seja enriquecer os criadores, alimentar vaidades de tolos pretensiosos e matar o tempo de quem não tem o que fazer.
Tags: Facebook, Twitter
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Um professor que lamenta se não tuítam em sua aula
16th dezembro
2010
written by Paulo Nogueira
Esta foi uma das entrevistas mais instrutivas que fiz em 2010.
MUITOS ESTUDIOSOS lamentam o advento da era das multitarefas, caracterizada pela execução de várias atividades simultaneamente. Não o economista Tyler Cowen, professor de economia da George Mason, uma universidade perto de Washington na qual mais de 7 mil alunos de 125 países se formaram em 2009. Cowen louva os novos tempos, em que as possibilidades de aquisição de conhecimento são, segundo ele, muito maiores do que jamais foram. Colunista de publicações prestigiosas como o jornal The New York Times e a revista digital Slate, Cowen publicou recentemente o livro Crie Sua Própria Economia: O Caminho para a Prosperidade num Mundo Desordenado, ainda não lançado no Brasil. Nele, Cowen exorta as pessoas a receber o mundo novo de braços abertos e com seus mouses a postos.
O principal ponto colocado pelos que observam com suspeita os tempos em que vivemos, o excesso de informações e suas consequências, é visto sem susto por Cowen. “A questão não é informação de mais, é filtragem de menos”, diz ele. Com uma filtragem eficiente, afirma Cowen, a nova era é plena de oportunidades fascinantes. Ele concedeu a seguinte entrevista a mim:
Você se considera uma pessoa multitarefa?
Tyler Cowen – Sim. Absolutamente. Eu deixo a música ligada enquanto leio ou escrevo em casa. Eu checo meu e-mail frequentemente. Eu prospero na mistura e acho que isso me ajuda a encontrar foco e concentração. Além disso, a mistura me mantém na escrivaninha ou no computador, trabalhando.
A verdadeira questão hoje, como você observa, não é exatamente o excesso de informação, mas a falta de um filtro eficiente. É fácil “construir” um bom filtro em meio a tanto conteúdo on-line, especialmente quando você é uma criança ou um adolescente?
Cowen – Eu descobri que, na internet, as pessoas são formidáveis para achar assuntos que lhes interessam. Não é apenas o Google. A internet nos põe em contato com outras pessoas que compartilham os mesmos interesses. O boca a boca se espalha de modo extremamente rápido na internet. Eu aprendo muito sobre sites com minha filha de 19 anos, ela navega na web muito bem. É claro que ela pega algumas dicas comigo também.
É possível fazer duas ou três tarefas simultâneas com qualidade, em sua opinião? A sabedoria antiga diz que você deve fazer apenas uma coisa por vez. Essa ideia está ultrapassada?
Cowen – A palavra “simultânea” é traiçoeira. As pessoas andam e falam ao mesmo tempo. Ou andam, pensam e falam. E por aí vai. Na Antiguidade também era assim. Eu não tenho dúvidas de que certas combinações são uma má ideia. Não tente resolver problemas matemáticos enquanto estiver fazendo sexo. A multitarefa nos dá energia e traz fertilidade ao pensamento se fizermos da maneira adequada. Você já notou que, nos desenhos famosos dos grandes pensadores, eles coçam a cabeça enquanto pensam.
Digamos que um estudante começa a tuitar durante uma de suas aulas. Isso estaria o.k. para você?
Cowen – As pessoas tuitam o tempo todo sobre as coisas que eu falo. Quando entro no Twitter, posso ver do que elas gostaram e do que não gostaram. Fico desapontado se ninguém tuita algum ensinamento meu, significa que não foi memorável.
Ficar conectado durante um longo período pode cobrar um certo preço em termos de exaustão mental. Você concorda com isso? Se sim, como lida com essa questão?
Cowen – É difícil eu ficar mentalmente exausto por ter passado muito tempo on-ine. Mas, quando saio com minha família ou amigos, acho tranquilo não checar o e-mail ou não mandar mensagens, e daí por diante. É importante ter a capacidade de trocar de modos. Não acredito que estejamos perdendo isso como sociedade. A ideia dos grandes espetáculos públicos está viva e ótima. No Brasil, um bom exemplo é o Carnaval.
Qual é o impacto das comunidades virtuais sobre as reais? Algumas pessoas têm amigos em outros países, mas não conhecem o próprio vizinho. Isso é normal?
Cowen – Tenho orgulho em dizer que não conheço meus vizinhos. Nem mesmo sei seus nomes. E, sim, tenho amigos e conhecidos ao redor do mundo.
Está se tornando uma cena comum cada membro da família andar pela casa com seu notebook em mãos, concentrado em seu próprio mundo online. Como você vê isso?
Cowen – Os membros da família trocam links o tempo todo e depois conversam sobre eles. Também mandam e-mails, uns para os outros, ainda que estejam sentados no mesmo sofá. Eu adoro ver e fazer isso.
Um leitor escreveu que não tinha terminado um artigo seu porque estava “muito longo”. Estamos nos tornando uma sociedade marcada pela superficialidade inerente à concisão trazida pela internet?
Cowen – Não.
Você poderia explicar por que considera positiva a transição da mídia impressa para a web na questão de aquisição de cultura?
Cowen – A Amazon, o eBay, o iTunes, o YouTube e muitos outros serviços online trazem maravilhas para a nossa vida. Livros, shows ao vivo e os semelhantes ainda estão por aí. As pessoas estão lendo e escrevendo mais do que nunca, sobretudo por causa da internet. Ela ressuscitou a cultura impressa e, na verdade, é a televisão que está sofrendo. Ninguém esperava por isso há 15 anos.
Você compara a vida moderna a um casamento. Por que essa ideia ocorreu a você?
Cowen – Bem, por estar casado! O valor está na história, na companhia, na ligação, mesmo quando isso parece uma rotina diária. Um casamento é muito mais que a soma das partes individuais. Você pode dizer o mesmo sobre todos os pequenos pedaços de informação e entretenimento da web. É algo realmente glorioso, mesmo se vários dos momentos individuais não parecerem especiais.
Você acredita na viabilidade do conteúdo pago, da maneira como Rupert Murdoch está tentando fazer com seu conglomerado de mídia, a News Corporation?
Cowen – O Wall Street Journal, que é do Murdoch, está fazendo dinheiro e provavelmente vai continuar fazendo. Mas acredito que o número de jornais nos países desenvolvidos vai encolher muito, muito drasticamente. Grande parte deles terá sumido em dez anos. Apenas os mais baratos e os mais nobres sobreviverão. A maioria das cidades não terá um jornal diário, as pessoas vão obter notícias locais de fontes variadas.
Você se considera viciado no conteúdo que a internet oferece?
Cowen – Se sou viciado em me divertir? Não, não naquele senso destrutivo em que as pessoas ficam viciadas em drogas ou álcool. Mas, sim, eu abominaria a ideia de largar a internet.
Tags: Tyler Cowen
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internet, vida moderna
O espírito hacker
11th dezembro
2010
written by Paulo Nogueira
Assange é defendido pelo Anonymous
Admito.
Admito que tinha uma idéia preconceituosa em relação aos hackers. Imaginava que fossem delinquentes cibernéticos. Gente que pega informações como o número de um cartão de crédito – o meu, por exemplo – e sai fazendo compras como mulheres em liquidação.
Como Toni, membro da gangue do Diário do Centro do Mundo, bem colocou num comentário, o espírito hacker é o oposto disso. É a crença de que o computador surgiu para liberar a humanidade. É a visão de que todas as informações são livres. É a desconfiança para com todos os governos e organizações centralizadas. É a crença de que todo mundo tem direito a um computador. Um livro cultuado de 1984, de autoria de Steven Levy, resume a filosofia hacker. O nome é sugestivo: “Hackers: os heróis da Revolução do Computador”.
Vejo agora com fascínio o Anonymous, os hackers que saíram em defesa do Wikileaks. Acabo de ler um manifesto deles. Eles não se definem como um grupo, mas como um encontro na internet. Há uma imagem poética usada para caracterizá-los. Formam um grupo apenas no momento em que, como um bando de pássaros, voam na mesma direção.
Como agora, em que estão com o Wikileaks – e com a liberdade de expressão.
No documento, eles explicam que querem levantar o grau de conhecimento sobre o cerco ao Wikileaks. Por isso não fazem sentido estragos na infraestrutura dos sites das grandes corporações que romperam com o Wikileaks. Os Anonymous mostram que têm uma pureza de samurais no combate. Não quiseram atacar o site da Amazon, depois que esta cortou a hospedagem, para não transtornar os conumidores de livros.
No manifesto, eles lembram que jamais houve um movimento similar a este, que recebeu o nome de Operation Payback, Operação Retorno. Por isso o aprendizado se dá em “tentativa e erro”.
2010 trouxe o Wikileaks. Trouxe Assange. Trouxe o Anonymous.
É um bom saldo.
Tags: Anonymous, hackers, Operation Payback, Steven Levy, WikiLeaks
A Rute é estranha
(mais estranha que o Ricardo)
Segunda-feira, 27 de Abril de 2009
Pink Floyd: Por falar nisso...
Caleidoscópios, viagens espaciais, porcos esvoaçantes e vacas de batuta na boca. Depois de décadas de rancor, processos judiciais e comentários pouco próprios na imprensa especializada, os Pink Floyd não conseguem deixar de celebrar a sua obra. Após a luxuosa reedição, em Setembro do ano passado, do seu álbum de estreia, The piper at the gates of dawn, voltam agora ao ataque com uma caixa que reúne a totalidade do seu catálogo gravado em estúdio (mensagem para os nossos mui prezados amigos puristas: sim, existem pelo meio quatro faixas gravadas ao vivo): dezasseis discos (formato mini-LP), vinte e sete anos de produção musical, onze horas de música. O Bodyspace não se assustou e foi à procura daquilo que jaz por trás deste Oh by the way.
Let there be more light
O Verão decorria como todos os Verões, lânguido e indolente. Embora os soldados morressem nas praias do Pacífico, houvesse racionamento de açúcar e gasolina e fosse difícil conseguir pneus novos para carros velhos, o Verão escoava-se. Tempestades estivais estalavam e desfaziam-se com súbita fúria, o povo lia ansiosamente os jornais, a fim de saber como se comportavam os ‘rapazes’, e verificou-se uma transformação na face da América: viam-se uniformes por todo o lado. Era difícil notar-se outra coisa que não fosse panamás brancos nas ruas principais das cidades costeiras. Porém, o Verão decorria, e, apesar de tudo, encontravam-se ainda alguns vestígios de paz e a guerra continuava a parecer muito longínqua.
Nas praias da América, os gira-discos faziam ouvir as canções populares. As raparigas estendiam na areia o bronzeado dos seus corpos, frescos e jovens, com dentes de um branco alvíssimo e pernas bem torneadas; trauteavam as canções dos discos, torciam palhas em garrafas vazias de Coca-Cola e escutavam o rumor distante das ondas que quebravam na areia. A guerra parecia muito, muito longínqua. Os parques de diversões arranjavam maneira de as grandes rodas nunca cessarem de girar, encontrava-se gasolina no mercado negro e os proprietários dos talhos tornavam-se mais ricos e mais obesos vendendo carne à socapa a clientes privilegiados. Uma vez por outra alguém estremecia ao ver uma estrela dourada na janela de um vizinho ou compadecia-se ao saber que um transporte fora metido a pique, que ninguém escapara e que um filho de um amigo ou de um parente se encontrava a bordo. Mas as reuniões paroquiais prosseguiam, os bailes demoravam-se, as raparigas e os rapazes usavam popas no cabelo, o nó Windsor tornava-se popular e as saias eram agora mais curtas. O Verão decorria. A guerra não parecia ser, à distância, apesar de tudo, o inferno de que se falara.
A América crescia. O Verão parecia passar como outrora: os mesmos corpos, as mesmas pernas. As mãos continuavam a acariciar faces, os dedos tocavam o côncavo das gargantas, os lábios afloravam orelhas e, subitamente, descendo até à abertura dos vestidos, chegavam ao bronzeado da carne. Mas as canções haviam sido substituídas pelas improvisações em regime bebop. Em 1948, Jack Kerouac conhecia Allen Ginsberg e William S. Burroughs. Nascia uma nova geração que se achava em fuga, cansada de lutar contra um modelo de sociedade opressivo. Os escritores beat (Allen Ginsberg, Gregory Corso, Jack Kerouac, Lawrence Ferlinghetti, Peter Orlovsky e William S. Burroughs) davam-lhe voz. A estrada tornava-se num modo de vida. Muitos eram aqueles que, tal como Kerouac o fizera e relatara em Pela estrada fora (1957), esticavam o dedo e partiam rumo à incerteza, às relações fugazes, às drogas; partiam à procura de novas experiências e significados.
As poetry readings estabeleciam-se enquanto acontecimentos. Seguir-se-iam os love in, manifestações de amor universal que juntavam milhares de hippies, ou hipsters, em torno de espectáculos multidimensionais que envolviam em estreita ligação, música, imagens e fragrâncias. Acontecia em São Francisco ; ouvia-se The Grateful Dead, Jefferson Airplane ou Big Brother and the Holding Company, enquanto o horizonte, em franca expansão, se fazia de projecções, estroboscópios e luzes negras. Marshall McLuhan, um especialista em mass media, ajudava a definir a geração pós-beat ao dizer que os sons, as informações e os impulsos eléctricos e electrónicos permitiriam, na sociedade tecnológica moderna, reencontrar a noção original de comunidade, de tribo.
Entretanto, o Reino Unido perscrutava já a sua antiga colónia. Robert Wyatt (The Soft Machine, Matching Mole; os Soft Machine tinham nascido após uma curta estadia de S. Burroughs em casa dos pais do Wyatt, adoptando a formação o nome de um dos seus romances) declarava ao jornal Melody Maker em 1967: «Quase todos os grupos de música pop, aqui ou na América, fabricam indefinidamente sons e melodias para fazer consumir, sob formas mais ou menos novas, as mesmas emoções, facilmente identificadas e assimiladas pelo público. Queremos quebrar esta imagem e este conceito, reencontrar o espírito do jazz, ou seja, uma expressão autêntica, selvagem, mas desta vez nossa e não dos negros.»
O Psicadelismo inglês era mais ténue que o estadunidense: faltava-lhe esse grande móbil que era a guerra do Vietname. No entanto, também este tinha o seu alvo: o english way of living. E ainda que menos numerosa do que a comunidade psicadélica de São Francisco, a comunidade londrina nem por isso era menos activa. Tinha até as suas próprias lojas, as head shops, onde podia ouvir música, fazer trocas, conversar e fumar. Como Kerouac previra alguns anos antes em Os vagabundos do Dharma (1958), as influências orientais faziam, junto do círculo psicadélico (ocidentais), cada vez mais adeptos. Duas suecas, Ula e Gitta, institucionalizavam essa tendência na sua loja em Chelsea, a Antique Market, que, poucas semanas após a sua abertura, se tornaria no templo londrino do vestuário in. Proliferavam os saris indianos e os casacos afegãos; a cítara e a tabla, redescobertas por George Harrison (The Beatles, The Traveling Wilburys) e Brian Jones (The Rolling Stones), faziam sombra à guitarra e à bateria; e havia já muitas pessoas a cederem ao caril e à cozinha macrobiótica.
Os dias viviam à laia de quaisquer supervisões; os céus propagavam as ideias. As rádios-piratas mostravam a ‘nova música’ em programas como o Lucy fruit show, na Radio Caroline, ou o Perfumed garden, na Radio London. Este último, programado e animado pelo lendário DJ John Peel, misturava os nomes mais conhecidos (The Beatles, Big Brother and the Holding Company, Bob Dylan, The Grateful Dead, Jefferson Airplane, etc.) com outros ainda não editados e que Peel ia gravar directamente aos clubes da capital inglesa. Apareciam também as primeiras publicações hippie, de entre as quais se destacava o jornal International Times (IT). Este trazia à explosão psicadélica inglesa uma forma de estar, uma direcção. Era nas suas páginas que a comunidade hippie londrina podia encontrar um pedido de revisão de «uma legislação hipócrita» em relação ao uso de drogas: «Porquê favorecer a utilização do purple heart [pequeno comprimido à base de benzedrina muito utilizado pelos mods]? Porquê considerar a marijuana uma droga narcótica quando não é mais perigosa do que o álcool?»
Plano de evasão
O IT lançava o slogan: «Quando a música muda, as paredes da cidade tremem!» Londres achava-se recheada de clubes que a faziam tremer. O UFO havia sido o primeiro – de índole psicadélica – a abrir portas. Lia-se numa nota publicitária redigida por S. Miles, co-fundador do clube: «O UFO é o clube das pessoas que lêem o IT. Tentámos criar um ambiente diferente do dos outros clubes. Temos tocadores de cítara, grandes grupos de percussão africanos, projecções de filmes de [Luís] Buñuel ou de Marylin Monroe. David Marowitz apresentou aqui três peças de teatro, três sátiras políticas. Há free jazz e, evidentemente, grupos psicadélicos.» Com efeito, o UFO favorecia todas as formas de espectáculo susceptíveis de provocar abalos de consciência. Havia sessões de música experimental (gravada ou ao vivo), projecções de vanguarda pela Exploding Gallaxy e filmes de Andy Warhol, Mekas e Yoko Ono.
Para a abertura do UFO haviam sido convidados os Pink Floyd (Pink de Pink Anderson; Floyd de Floyd Council – dois bluesmen da Georgia). Estes eram um dos primeiros grupos a brotar da fornalha psicadélica, de onde também provinham outros entretanto mais ou menos perdidos pelo avançar dos anos: Apostolic Intervention, Blossom Toes, The Crazy World of Arthur Brown (Carl Palmer passaria por lá antes de co-fundar, em 1970, os Emerson, Lake & Palmer), Sam Gospel Dream, Soft Machine (o então vocalista, Kevin Ayers, seria uma das principais referências do Psicadelismo britânico), Syn (grupo que viu nascer Chris Squire, o lendário baixista dos Yes), Tomorrow (com o debutante Steve Howe, mais tarde guitarrista dos Yes e dos Asia – lembram-se da guitarra flamenca em “Innuendo” dos Queen…?), etc. A honra era-lhes devida. Os Pink Floyd haviam sido revelados por John Hopkins, um outro co-fundador do IT, por ocasião do lançamento do jornal. Esta seria a primeira grande reunião da comunidade hippie, com os Pink Floyd em palco a apresentarem uma música e uma encenação que se coadunavam intimamente com o Psicadelismo.
À altura, o grupo estava ainda nos seus primeiros meses de existência. Syd Barrett havia-se juntado recentemente à formação que, até há poucos meses, lançava âncora no blues sob a designação de Architectural Abdabs (por vezes The Screaming Abdabs ou The T-Set), numa clara alusão à actividade social de Roger Waters, Nick Mason e Richard Wright, então estudantes de arquitectura na Escola Politécnica de Londres. Com a sua entrada, o interesse pelo blues começaria a decrescer na mesma proporção com que aumentava o interesse pela música electrónica e pela ficção científica. Depois do lançamento do IT, o grupo iniciaria uma ronda de concertos nos quais desenvolveria as suas próprias composições, muitas vezes levadas ao extremo por intermédio de improvisações que lançavam autênticos dilúvios sonoros sobre a assistência. Seguir-se-iam as participações em programas televisivos e a gravação do primeiro single com duas composições de Barrett: “Arnold Layne” e “Candy and a currant bun”. O disco teria boa aceitação, mas o formato nem por isso agradava a um grupo habituado a divagar por longas auto-estradas sonoras. A providência seria, no entanto, célere: Peter Whitehead filmaria a interpretação de “Interstellar Overdrive” – a viagem de uma nave interplanetária que, depois de atravessar os engarrafamentos em redor da Terra, mergulhava no infinito – para o seu documentário sobre a Swinging London, Tonite let's all make love in London (1967; a edição discográfica editada pela See for Miles em 1993, contém ainda a faixa “Nick’s Boogie” - uma preciosidade para todos aqueles que queiram aventurar-se nos primórdios do grupo).
Retrato do artista quando jovem
Os Pink Floyd chegavam ao Queen Elisabeth Hall, no dia a seguir ao da edição de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band (1967) dos Beatles. O tempo escapava-se momentaneamente à clausura dos formatos irreversíveis. Numa espécie de premonição, Syd Barrett daria o melhor concerto da sua carreira. Manter-se-ia no proscénio durante a maior parte do espectáculo, envergando uma capa e esboçando, com um dos braços, gestos circulares ao jeito de Pete Townshend (The Who). Com a face fortemente iluminada, projectava uma sombra inquietante no ecrã colocado por trás do grupo. Nesse dia os Pink Floyd seriam apenas Syd Barrett, um Syd Barrett alucinante, trocista… talvez profético em relação a si próprio.
Paranóico, Barrett refugiar-se-ia em casa dos pais, em Cambridge. A sua saúde débil não era surpresa para os restantes músicos do grupo. À semelhança dos grandes românticos ingleses, Syd era consumido pelos seus delírios interiores, sendo-lhe cada vez mais árduo conciliar as exigências do grupo (concertos, ensaios e gravações) e as suas exigências pessoais, reguladas pelo LSD.
Depois da saída do segundo single, See Emily play (1967), o grupo ansiava pela gravação do seu primeiro álbum. Andrew King, empresário da banda, diria mais tarde: «A perspectiva de gravar parecia inspirar e avivar a criatividade de Barrett. Ninguém sabia ao certo se ele chegava com canções já feitas ou se as escrevia à socapa durante as sessões. Seja como for, escrevia muito rapidamente e desde que nos aproximássemos de um estúdio, as suas canções apareciam como por encanto.»
The piper at the gates of dawn (1967) seria a primeira colaboração entre o grupo e Norman Smith, produtor oficial do álbum. Tornava-se ainda mais claro que os LPs eram, para os Pink Floyd, o formato ideal, embora apenas “Interstellar Overdrive” – uma versão ainda assim menos exuberante do que a contida na banda sonora de Tonite let's all make love in London – ultrapassasse a barreira dos quatro minutos.
António Jorge Quadros, crítico de música do Phono, não tem dúvidas em afirmar que «o Shangri-La da revolução [musical psicadélica] é o (ainda) inesgotável álbum de estreia dos Pink Floyd». Com efeito, The piper at the gates of dawn é, talvez juntamente com os dois primeiros volumes da discografia dos Soft Machine, a melhor porta de entrada para a música psicadélica britânica. “Astronomy Domine”, uma violenta evocação sideral, estabeleceria per se as regras do que iria ser conhecido por space rock; enquanto “Chapter 24” , um canto místico retirado do I Ching, e “The Gnome”, uma pequena ladainha infantil sobre um fundo de vibrafone e caixa chinesa, marcariam várias gerações de músicos devido à sua aparente e deslumbrante fragilidade.
Na edição de Setembro de 2006 da revista Uncut, uma edição em parte dedicada ao desaparecimento de Barrett, muitos eram aqueles que reconheciam a sua dívida: «O Syd foi uma grande fonte de inspiração. As poucas vezes que o vi actuar no UFO e no Marquee, ficarão para sempre gravadas na minha memória. Ele era muito carismático e original» (David Bowie; ouçam a sua versão de “See Emily play”, presente no álbum Pin ups, de 1973); «Adoro as canções do Syd Barrett, especialmente aquelas que parecem inacabadas. […] Há alguns anos gravei uma demo caseira chamada Demo crazy. Não a mostrei a muitas pessoas porque não passava de uma colecção de esquiços gravados em quartos de hotel. Era, porém, fruto da minha admiração pelo trabalho de Barrett» (Damon Albarn: Blur, Gorillaz e The Good, The Bad & The Queen); «Adoro a sua música desde a minha adolescência» (Bobby Gillespie: Primal Scream).
A dois de Novembro de 1967, os Pink Floyd preparavam-se para enfrentar pela primeira vez a Costa Oeste estadunidense. Teriam pela frente um país dividido pela guerra do Vietname, um país feito das atitudes heróicas daqueles que gozavam de uma situação cómoda, que não se expunham à guerra, e do verdadeiro heroísmo sem glória dos que haviam sofrido os horrores da frente. A fim de prepararem melhor o concerto no incontornável Fillmore West, em São Francisco , os Floyd renunciariam uma digressão pelo Reino Unido, tendo por companhia Jimi Hendrix e os grupos Amen Corner e The Move. O resultado deste período sabático seria, contudo, algo desastroso. Dividindo o cartaz com Richie Havens e os Big Brother and the Holding Company, os Pink Floyd trocariam as voltas aos californianos. Estes – os californianos – esperavam reencontrar na música do quarteto britânico, a mesma tónica colocada na alegria de viver o momento presente. Todavia, os Floyd apresentariam uma música de contornos ásperos, cortantes, duros, vertiginosos. A segunda passagem pelo Fillmore, desta feita com os H. P. Lovecraft e os Procol Harum, apenas agravaria a má impressão por parte dos ‘filhos das flores’.
Já de volta ao Reino Unido, o grupo tomava uma decisão: daí em diante contariam com cinco elementos. A primeira digressão por terras americanas havia precipitado a exaustão de Barrett, que agora se mostrava cada vez menos capaz de fazer face às exigências do grupo. De comum acordo, ficaria combinado que Barrett ingressaria ou deixaria o grupo sempre que lhe apetecesse e que se recrutaria um novo guitarrista-vocalista para cobrir as suas ausências. «Durante um mês, ensaiámos os cinco, o que era sem dúvida aquilo que queríamos. A nossa ideia era adoptar a fórmula dos Beach Boys: Brian Wilson juntava-se ao grupo quando o desejava [sendo na sua ausência substituído por Bruce Johnston]. Queríamos absolutamente, de uma forma ou de outra, conservar Syd Barrett no seio dos Pink Floyd. Mas ele deixou-se influenciar por uma quantidade de gente que não cessava de lhe repetir que ele era o único talento do grupo e que devia enveredar por uma carreira a solo», contaria Nick Mason ao Melody Maker em 1975. O quinto elemento, David Gilmour (ex-Flowers, ex-The Crew), diria de sua justiça em 1968: «Syd é um génio, mas está louco, clinicamente louco, e não por causa do LSD: foi sempre mais ou menos assim, o que é terrivelmente triste para nós que o conhecemos bem [Gilmour era amigo de infância de Barrett]. Por vezes consegue compor várias canções extraordinárias de seguida e toca de uma forma fascinante, sem que ninguém o possa igualar. Mas na maioria das vezes não faz nada de coerente e, nestas condições, é-lhe completamente impossível estar no palco. Às vezes avança simplesmente com a guitarra, senta-se e nem sequer põe a mão esquerda no braço do instrumento, limitando-se a arranhá-lo com a mão direita durante imenso tempo.» Em entrevista à Uncut (edição de Maio de 2007), Roger Waters revelava ter a certeza de que o LSD tinha apenas agudizado o declínio de Syd: «Ele já andava um pouco estranho. Certa vez, aquando de umas gravações que fizemos para o Top of the Pops [programa televisivo exibido no segundo canal da BBC, que se manteve no ar até Julho de 2006], começou a dizer coisas como: “O John Lennon não tem de fazer isto; por que razão terei eu?” […] A partir dessa altura [Junho de 1967] tudo começou a descambar. No final do 1968, ele já estava completamente fechado para o mundo. […] Um dia, quando íamos buscá-lo para um concerto, dissemos “Nah”, e seguimos em frente.»
Barrett afundar-se-ia nos seus próprios delírios, reaparecendo alguns meses depois quando uma secretária do agente dos Pink Floyd o descobriu a dormir num jardim público. Syd havia combinado com Norman Smith a gravação de, pelo menos, um álbum a solo por ano para a etiqueta deste (Harvest). Após contar com a participação de vários músicos, entre os quais Mike Ratledge e Robert Wyatt (ambos dos Soft Machine), o seu primeiro álbum a solo, The madcap laughs (1970), teimava em não avançar devido aos seus problemas recorrentes. Gilmour e Waters, todavia, sob a ameaça de Smith em não renovar o contracto a Barrett se este não apresentasse no prazo de duas semanas o material necessário para a concretização de um álbum, decidiriam eles mesmos produzir os seis temas que compõem o registo, tarefa que realizariam de forma espantosa em apenas três dias.
No seu próximo álbum, simplesmente intitulado Barrett (1970), Syd seria novamente auxiliado por antigos colegas seus, desta feita por Gilmour e Wright. O pesadelo, esse, mantinha-se inalterado: Syd continuava a viver como um misantropo convicto, sendo muito difícil para David e Richard tirá-lo da sua sala de estar (a mesma que aparece na capa do seu álbum de estreia), onde pintava, compunha e tocava.
Com o seu desaparecimento em Julho de 2006, havia novamente quem perguntasse: era ou não Barrett um músico provido de génio? Eduardo Mota, co-organizador do festival Gouveia Art Rock (festival anual dedicado exclusivamente à música progressiva), é bastante claro na sua opinião: «Parece-me que esse elemento trágico do seu percurso pessoal, em especial o desaparecimento prematuro, força o surgimento dessa auréola de genialidade comum a vários músicos. São exemplo disso Ian Curtis, Janis Joplin, Jimi Hendrix, Judee Sill, Nick Drake, Shelagh McDonald e muitos outros. Por consequência, o conhecimento póstumo da obra destes assume quase sempre o carácter de revelação. Entramos no domínio da ‘Mitologia’. E cabe aqui repetir uma interrogação: Que imagem teríamos nós da obra desses músicos se não tivesse ocorrido o seu passamento temporão (físico ou mental), e continuassem a produzir trabalhos, alguns de qualidade inferior? Repare-se no caso inverso de Donovan (Leitch). Apesar de ter criado, na segunda metade dos anos ’60, uma obra discográfica importantíssima – indicando, juntamente com a Incredible String Band, o caminho que conduziria ao maravilhoso mundo da folk progressiva britânica da primeira metade da década seguinte –, quem fala hoje do escocês e o aponta como um grande inovador? Deveria ter ele falecido em 1970 de desastre rodoviário ou ensandecido com LSD em vez de continuar a gravar álbuns?» O saudoso Fernando Magalhães, antigo jornalista e crítico musical do jornal Público, tinha, já em 2003, uma opinião semelhante à de Eduardo Mota: «Incluo-me no grupo dos que acham Syd Barrett sobretudo uma personagem carismática cuja vida e morte conferiram a patine de génio. […] Basta escutar a caixa que foi editada há uns anos com a cobertura extensiva da música de Syd [Crazy diamond, 1994], para se perceber até que ponto lhe era penoso compor/cantar/tocar. São takes e takes inutilizados, voz e guitarra desafinados ou fora de tempo antes de se conseguir chegar a uma versão definitiva de cada canção. Um músico vale pelo que faz e produz e não pelos seus sonhos, por mais delirantes e coloridos que sejam. Dito isto, considero o The piper at the gates of dawn um excelente álbum e ouço com agrado os dois trabalhos a solo do Syd Barrett.»
Oh mais!
A saucerful of secrets (1968) ilustrava o novo equilíbrio que se havia estabelecido no seio dos Pink Floyd. Waters e Wright assumiam a direcção artística, aproximando o quarteto da experimentação em grandes formatos e, simultaneamente, transportando-o para a década seguinte. Com efeito, embora houvesse ainda em A saucerful of secrets alguns momentos que relembravam os trejeitos psicadélicos de The piper at the gates of dawn (“Let there be more light”, “Corporal clegg” e “Jugband blues” - esta última ainda com Barrett), outros havia que projectavam o grupo em estéticas futuras (“Set the controls for the heart of the Sun” e “A saucerful of secrets”). No entanto, apesar dos sinais comprovativos de um certo amadurecimento estilístico, o grupo não estava ainda preparado para fechar de vez as portas à drug culture – a sua próxima obra assim o atestaria.
Gilmour, Mason, Waters e Wright tinham respondido ao convite do jovem realizador cinematográfico Barbet Schroeder. Deveriam escrever e gravar a banda sonora do seu próximo filme, intitulado More (1969), cujo motif provinha de uma citação do filósofo Carl Jung: «Em geral, para os homens, o inconsciente representa a alma sem rosto de uma mulher.» Disse Schroeder: «Para a gravação, os Floyd compunham a música durante a tarde, vendo o filme, e depois gravavam à noite, entre a meia-noite e as nove da manhã. […] Os Pink Floyd fizeram-me a música ideal. Mostrei-lhes o filme e pedi-lhes uma música que estivesse de acordo, sem lhes dar quaisquer directivas. Eles encontraram um elemento mágico impressionante e sobretudo o sentido do espaço… A tal ponto que tive de baixar o volume da música. A sua qualidade aniquilava literalmente algumas das cenas!»
More tornar-se-ia uma obra-chave do período pós-Swinging London. Os Pink Floyd captavam a essência da história de destruição pelo amor e pela droga – Estelle (Mimsi Farmer) fazia gato-sapato de Stefan (Klaus Grunberg), numa Ibiza pré-reggaeton –, em composições que revelavam um grupo em ascensão criativa. Pelo meio tinham ainda tempo para escrever “Quicksilver”, uma composição inspirada na musique concrète de Edgard Varèse, que, à luz de quem agora olha para trás, prenunciava e pronunciava já Ummagumma (1969).
Canto de mim mesmo
Ummagumma não era apenas um nome esquisito; era também uma declaração de liberdade e um objecto paradigmático. Registo duplo, tinha algumas particularidades: apresentava gravações feitas ao vivo (o primeiro tomo fazia-se de novas versões de temas antigos) e em estúdio – um modelo nunca antes visto e que seria mais tarde adoptado pelos Soft Machine em Six (1973); e permitia, no segundo volume, a apresentação individual das diferentes visões dos quatro elementos: cada um tinha cerca de dez minutos para, preferencialmente a solo, mostrar o que valia – outro modelo também nunca antes visto e que faria escola nos Yes (Fragile, 1972), nos Emerson, Lake & Palmer (Works, Vol. 1, 1977) e nos ‘nossos’ Tantra (Mistérios e maravilhas, 1977).
Richard Wright abria as hostilidades com “Sysyphus”, uma peça escrita para mellotron e piano. Claramente inspirada em György Ligeti (Musica ricercata, 1953) e Pierre Boulez (Sonatas para piano, 1946-58), “Sysyphus” ia buscar ainda algumas influências à liberdade jazzística de McCoy Tyner e Cecil Taylor (note-se, por exemplo, a intensidade com que Wright pressionava as teclas do piano). Porém, estruturalmente, não há como negar a adopção de gramáticas mais antigas: a peça principia e finda com a mesma evocação: um majestoso motivo que Ludwig van Beethoven, por certo, não desdenharia.
Seguia-se-lhe Roger Waters. A pastoral “Grantchester meadows” logo dava vez à kafkiana “Several species of small furry animals gathered together in a cave and grooving with a pict”, onde, por meio de um habilidoso exercício de multi-dubbing, se fazia desaguar o material musical num imenso oceano de insectos liderados por um outro com esgares à Adolf Hitler. A loucura era brava, desbragada, mas não contagiosa: David Gilmour assinava “The narrow way”, o momento mais ‘normal’ do álbum; Nick Mason reintroduzia a erudição: “The grand vizier’s garden party” era uma espécie de Poème eléctronique (Edgard Varèse, 1958), que, à falta de melhor aplauso, levantava algumas pistas sobre o porquê de Mason se tornar, alguns anos mais tarde, no produtor de álbuns tão marcantes como Rock bottom (Robert Wyatt, 1974) e Shamal (Gong, 1976).
La vache qui regard
O álbum seguinte, Atom heart mother (1970), via os Floyd voltar ao formato tradicional de grupo de rock, ainda que desta vez com o acréscimo de uma fanfarra, seguindo assim as pegadas dos Deep Purple (Concerto for Group and Orchestra, 1969) e juntando-se aos Yes (Time and a word, 1970). Estávamos, pois, perante o sucumbir dos Floyd às modas da época, naquele que era o seu primeiro álbum, após a partida de Norman Smith, a ser concebido com a participação de alguém exterior ao grupo. Ron Geesin, orquestrador, produtor e entusiasta de técnicas de gravação inovadoras e da utilização da fita magnética enquanto instrumento de criação musical (produziria o belíssimo álbum de estreia de Bridget St. John, Songs for the gentle man), era um velho amigo que Waters havia reencontrado aquando da gravação da banda sonora de The body (1970). «Os produtores deste filme paramédico procuravam desesperadamente alguém capaz de lhes escrever uma banda sonora adequada. Entraram em contacto com Tony Gardner que depois alertou John Peel. Este telefonou-me visto saber que eu, por vezes, fazia filmes publicitários e documentários. Percebi que desejavam música com atmosfera e pensei imediatamente no Roger. Ele escreveu quatro títulos e eu fiz o resto. Depois propôs-me ajudar os Floyd a realizarem o seu novo álbum; queria que eu escrevesse os metais e os coros. Os Pink Floyd partiram para os Estados Unidos deixando-me uma fita. Quando voltaram, não sabiam exactamente o que queriam. Escrevi a partitura para o coro com a intervenção do Dave e do Rick. Depois, John Alldis, o director do melhor coro erudito deste país [o prestigiadíssimo John Alldis Choir], juntou-se-nos e terminou o projecto», disse Ron Geesin à revista Rock & Folk, em 1970.
A enorme quantidade de trabalho contida na suite “Atom heart mother” era facilmente perceptível. Estruturada em quatro partes, esta suite associava estreitamente o coro e os metais com a instrumentação tradicional do quarteto. Os Pink Floyd pareciam ter encontrado o seu denominador comum, depois de fundidas as veleidades de cada membro. Mas teria sido esta a melhor forma de o fazer? Não estariam eles a abdicar da virulência estética que caracterizava os seus registos anteriores?
Na outra face de Atom heart mother (eram os dias do vinil), a oferta era mais variada: a megalomania voltava a fazer das suas na porém bela “Summer '68” , contrapondo-se assim a simplicidade de “If” e “Fat old Sun”. Contudo, apenas em “Alan’s psychedelic breakfast” se cumpriam as boas promessas de Ummagumma. Este pequeno-almoço musical havia sido composto no ano anterior como parte inicial da peça The man, onde, numa longa suite de quarenta minutos, se retratava um dia na vida de uma pessoa comum. Ao nascer do sol, magnificamente expresso por uma engenhosa progressão visual e sonora, seguia-se o pequeno-almoço, o trabalho, o intervalo para o chá (em que todos os elementos do grupo paravam de tocar para tomar chá em pleno palco), o amor e, por fim, a noite (uma espécie de Days of future passed dos Moody Blues, portanto…).
A dois de Janeiro de 1971, os Pink Floyd eram convidados pelo coreógrafo Roland Petit a participar na Soirée Roland Petit. Este encontro seria visto pelos fãs franceses como o apogeu da degradação de um grupo que, depois de cair no academismo barroco em Atom heart mother, se deixava agora enlaçar pelas velhas glórias do Casino de Paris. Ao público francês faltava o distanciamento que agora, quase quarenta anos depois, nos apresenta uma visão diferente sobre um mesmo objecto. Atom heart mother abria uma época de excessos: o rock sinfónico encontrava a sua voz em grupos como os Camel, os Emerson, Lake & Palmer, os Genesis ou os Yes; os alemães ensaiavam na garagem de Karlheinz Stockhausen (Agitation Free, CAN, Cluster, Cosmic Jokers, La Düsseldorf , Faust, Guru Guru, Harmonia, Klaus Schulze, Kraftwerk, Neu!, Popol Vuh, Sergius Golowin, Tangerine Dream, Xhol Caravan); Alan Parsons convidava Edgar Alan Poe para jantar (Tales of mystery and imagination, 1975); os Canários sonhavam com António Vivaldi (Ciclos, 1974); os Gryphon tratavam Henrique VIII por tu (Gryphon, 1973); os Jethro Tull fundavam um jornal (Thick as a brick, 1972); o Melody Maker dizia que «se Richard Wagner fosse vivo quereria trabalhar com os King Crimson» (In the wake of Poseidon, 1970), e estes respondiam com algo (Lizard, 1970) mais próximo de Miles Davis (Sketches of Spain, 1959) e, portanto, de Joaquín Rodrigo; os Renaissance tinham mil e uma histórias para contar (Scheherazade and other stories, 1975); Rick Wakeman viajava até ao centro da Terra (Journey to the centre of the Earth, 1974); os Rush escreviam distopias (2112, 1976); os Soft Machine produziam grandezas inumanas (Third, 1970); e Vangelis separava o céu e o inferno com uma canção pop (Heaven and Hell, 1975). Ou seja, os Pink Floyd haviam feito o que se esperava de um grupo herdeiro da tendência iniciada pela música popular urbana nos anos 1950, a qual se achava agora provida de melhores meios e mais vasta ambição. A progressão das várias linguagens fazia-se por intermédio de experiências, e Atom heart mother era, como se viria a confirmar em Meddle (1971), apenas mais uma etapa. As vacas gordas, essas, ainda estavam para chegar.
Um destes dias
Ainda que na sua génese estivesse um olhar para trás (o grupo não havia ficado satisfeito com as gravações de estúdio de Ummagumma, pelo que se preparava para repetir o esquema que lhes tinha dado origem), Meddle seria incontestavelmente um passo em frente, até no consolidar da posição de Roger Waters enquanto líder do grupo. Conseguia ser mais diversificado do que o seu antecessor, Atom heart mother, sem que para isso precisasse de abrir mão de um certo grau de coesão. Mais importante: não repetia os erros do passado: guardavam-se as fanfarras no bolso, fechava-se a porta ao mundo (às modas) e conseguia-se um som novo, um som que olhava em frente.
Os Pink Floyd entravam definitivamente na década de 1970. A violência da faixa de abertura, “One of these days”, com as suas letras sumárias mas providas de uma violência impar na carreira dos Pink Floyd (cantava Mason: «One of these days I'm going to cut you into little pieces»), era um bom indício das mudanças que então se operavam. Seguia-se a placidez de “A pillow of winds” (uma grande canção de amor), o rock de “Fearless”, o bambolear de “San Tropez” (onde, segundo consta, Gilmour terá seduzido Brigitte Bardot) e o blues de “Seamus” (Gilmour e o seu cão, Seamus, cantavam à porta de casa).
Mas era “Echoes”, a faixa que ocupava integralmente a segunda face do disco (ainda o vinil), que dava o toque de grande obra a Meddle. A sequência inicial fazia-se com uma meia-dúzia notas dadas no piano e, simultaneamente, afogadas em efeitos. Estas soavam como se de pingos de água se tratassem. Ouvia-se um pingo e depois outro e outro ainda; perfuravam a quietude das águas que se achavam por baixo. Seguia-se um lento improviso sobre esse som, à partida sem grandes perspectivas que não a de simples efeito. Sobrepunham-se o baixo, a bateria, a voz e, após um leve ameaço, um notável primeiro solo de Gilmour. Abrandava-se o swing; repetia-se o processo e Gilmour dava início ao seu notável segundo solo.
Meddle conheceria um enorme êxito, continuando dois anos depois, em 1973, muito bem classificado nos hit-parades britânicos. A evolução dos Floyd era agora mais lenta e serena, coerente e reflectida.
Ainda o cinema
Verão de 1972. O quarteto fazia férias em San Tropez numa casa com persianas de um azul esmorecido, criadas atarefadas com a lida diária, lavando, cozinhando, servindo à mesa. Moviam-se por entre o cheiro de flores silvestres; a casa achava-se cercada delas e o perfume introduzia-se pelas janelas abertas. Richard Wright e Juliette Gale, sua esposa e uma das primeiras vocalistas dos Architectural Abdabs, brincavam com elas: apanhavam as pétalas caídas e deixavam-nas tombar por entre os dedos enquanto os outros se reuniam no alpendre, com as suas roupas claras, e tomavam bebidas geladas sob o fundo esmorecido das persianas. Mais tarde aglomeravam-se todos em torno de um piano e cantavam velhas canções inglesas.
Já de regresso a casa, o quarteto empreenderia uma digressão pelo Reino Unido. Dispunham de um novíssimo equipamento sonoro – a quadrifonia fazia a sua estreia – e sentiam-se mais maduros, mais aptos para tocar ao vivo e promover uma discografia que se achava agora encimada pelo álbum que lhes havia traçado novas coordenadas. Fariam setenta e duas datas e, numa delas, seriam pirateados (conferir The best of Tour 72). Este infortúnio aborrecê-los-ia imenso, uma vez que não tinham prevista a gravação imediata de alguns temas novos – Dark side of the moon (1973) parecia não estar com grande pressa para nascer. O grupo completaria ainda as gravações de uma nova encomenda de Barbet Schroeder, a banda sonora de La vallée (1972), cujo álbum correspondente, Obscured by clouds (1972), acabaria por ser posto à venda meses antes do previsto, justamente com o objectivo de dar ao mercado algo que o distraísse da gravação pirata que então já circulava.
Apesar da beleza das paisagens da Nova Guiné, o filme acabaria por desiludir o público de More. O argumento era interessante: a descoberta da vida, sob as suas formas dionisíacas, pela mulher de um embaixador (Bulle Ogier), e a exploração por uma comunidade (J.P. Kalfon, Michael Gothart e Valérie Lagrange) de um vale misterioso. Mas à concretização, ao objecto final, faltava a marca geracional de More. O álbum, porém, conseguia apartar-se da fraca qualidade do filme: Obscured by clouds era estranhamente coeso e continha algumas preciosidades: os ambientes asfixiantes de “Obscured by clouds” e “Absolutely curtains”, e o à-vontade de “Burning bridges”, “Wots uh the deal”, “Mudmen” e “Stay” – notar nesta última as raízes de Wet dream (1978), o álbum que marcaria a estreia a solo de Richard Wright. De resto os Floyd pareciam muito contentes com o resultado: «Ficámos bastante satisfeitos com a nossa música. Portanto, não vejo onde está o problema, se é que há algum problema. Voltando à música, ela era, no nosso espírito, uma sucessão de canções. Não era um álbum dos Pink Floyd, mas um conjunto de canções. O todo equilibrava-se muito bem por entre ritmos e ambientes diferentes», diria Nick Mason à revista Rock & Folk em 1973.
A experiência de La vallée era, pois, inversa à de Zabriskie point (1970). Michelangelo Antonioni havia utilizado apenas três dos vinte temas gravados pelo grupo, fomentando-lhes a fúria e alguns comentários indecorosos (envolviam a palavra “tirano”). O filme era, todavia, bem melhor do que a música: “Come in number 51, you time is up” era, por exemplo, um remake mal disfarçado de “Careful with that axe, Eugene”.
Frustrados, decidiriam eles próprios abraçar a sétima arte em Live at Pompeii (1971). Co-produzida por várias televisões europeias, esta longa-metragem de Adrian Maben era o resultado de uma ideia muito cara ao grupo que, desde Tonite let's all make love in London, sonhava ser imortalizado em filme num quadro completamente floydinao. E Maben saberia captar muito bem a execução dos músicos: as versões de “Careful with that axe Eugene”, “A saucerful of secrets”, “One of these days” e “Set the controls for the heart of the Sun” tornar-se-iam derradeiras, as absolutamente perfeitas.
A Lua é triangular
Depois de um período experimental mais ou menos bem sucedido, o grupo encontraria em Dark side of the moon, a peça que faltava para preencher de vez o vazio deixado por Syd Barrett. Este salto e esta renovação seriam sobretudo obra de Roger Waters, o que revelava já a sua plena condição de líder. Contudo, o reconhecimento dos outros Floyd não podia ser negligenciado: Nick Mason brilhava na produção e na manipulação das fitas magnéticas (ainda a musique concrète; Waters também se aventurava nestes domínios), Richard Wright continuava a ser o harmonizador e David Gilmour dava continuidade à sua ascensão enquanto guitarrista.
O grupo permitia-se ainda a algumas audácias: o saxofone de Dick Parry em “Money” e “Us and them”; a voz de Clare Torry em “The great gig in the sky”; e o modulador VCS3 em “On the run” e “Any colour you like” (os Floyd haviam sido convidados, juntamente com os King Crimson e os Curved Air, a experimentar esta versão simplificada dos teclados Moog). Estes pequenos atrevimentos apartavam-se claramente da condição de artifícios harmónicos destinados a camuflar uma certa vacuidade (olá Atom heart mother). Eram antes finuras que dotavam a música, que nem por isso se havia distanciado da estética de Meddle, de novos elementos timbricos que ajudavam a solidificar a estesia floydiana. Assim, o grupo partia em direcção a uma condensação das fórmulas usadas no seu passado recente, sendo que estas eram agora mais imediatas e próximas do espírito do rock corrente. Contavam para isso com dois artífices de grande gabarito: o engenheiro Alan Parsons: criaria o Alan Parsons Project que, de quando em quando, faria lembrar os Floyd; e o produtor Chris Thomas: trabalhara em álbuns como The Beatles (The Beatles, 1968), Grand Hotel (Procol Harum, 1973) ou For your pleasure (Roxy Music, 1973).
Dark side of the moon trazia ainda no regaço uma enorme novidade: era o primeiro álbum do grupo a alicerçar-se num conceito assim explicado por David Gilmour: «O tema de Dark side of the moon relaciona-se com todas as pressões da vida moderna que nos podem levar à loucura. Estas pressões, o dinheiro, as viagens ou a planificação, sentimo-las nós, músicos, muito mais do que o homem da rua. Quando tudo se desequilibra, chegamos à situação patológica do louco.» Os temas, apesar de não estarem aparentemente interligados, encadeavam-se, íntima e inexoravelmente, na exploração do modus vivendi de um normal habitante do mundo ocidental ou ocidentalizado.
O álbum principiava com uma montagem assinada por Mason, na qual eram enumerados alguns dos vícios (ruídos nocivos) da vida moderna, servindo também de introdução a “Breath”, tema que actuava como um anti-clímax das perversidades descritas na faixa anterior. O clima etéreo de “Breath” era composto por pequenas pinceladas de guitarra que aí assumiam uma força evocadora impressionante, desembocando no experimental “On the run” e tornando a aparecer em “Time”, este sobre a fuga e a obsessão do tempo que se elevava num dilúvio de mecanismos de relógios e pêndulos.
Seguia-se “The great gig in the sky”. Clare Torry havia sido chamada aos estúdios Abbey Road. As folhas das árvores, arrancadas pelas fortes chuvadas, tingiam as bermas da estrada de um amarelo-dourado, conferindo-lhes o aspecto de um leito seco de um rio. Era domingo, pelo que o seu namorado se havia oferecido para a acompanhar. Cá fora não se ouvia nenhum som além do ruído que os passos dos transeuntes produziam ao pisar as folhas caídas. Dentro do estúdio, porém, Torry cantava «Yeah, yeah, baby, baby». Disseram-lhe depois que não queriam quaisquer palavras. Wright estava aflito. Torry preparava-se já para regressar a casa quando se lembrou de que talvez não tivesse percebido a intenção da peça. Retirou o casaco e projectou a voz como se de um outro instrumento se tratasse. Cantava agora: «Whoah-oh-aaaa-woo-a-woaah…» – que nos perdoem novamente os nossos amigos puristas. Já de regresso ao carro, terá dito ao namorado que a sessão não tinha corrido bem. Passou uma factura de trinta libras (havia acrescido quinze libras ao preço normal que cobrava durante os dias de semana) e, passados alguns meses, comprou o disco apenas para descobrir que o seu primeiro take havia sido utilizado. Fez as contas e, em 2005, decidiu cobrar mais algum pilim. Pelo meio participou em álbuns dos Tangerine Dream e dos Culture Club. Os Floyd entravam no mercado; “Money” expressava-o. Esta alusão ao vil metal seria um dos temas emblemáticos do grupo e revelava Waters enquanto mestre na experimentação com as fitas magnéticas, as quais, para introduzirem o ritmo na canção, tinham sido cortadas à mão e depois milimetricamente coladas. “Money” era o grande momento, aquele que de facto evidenciava uns Pink Floyd mais maduros. Mas Dark side of the moon tinha ainda outros momentos que o colocavam, se não no clima geral pelo menos na execução, um passo adiante de Meddle: “Us and them” revelava inovações melódicas particularmente evidentes nos coros à Moody Blues e no solo de saxofone de Dick Parry – o Alan Parsons Project dar-lhe-ia seguimento com “Time” (The turn of a friendly card, 1980); o instrumental “Any colour you like” aproximava-se de A rainbow in curved air (1969) de Terry Riley, nascendo de um fundo de VCS3 que depois era salpicado por violentas improvisações, nomeadamente por dois solos cruzados de David Gilmour; e a extraordinária reconstituição da alienação que era “Brain damage”, uma evocação musical atormentada, pontuada por gargalhadas e refrões majestosos, fundava-se nos prodigiosos coros femininos (Liza Strike, Doris Troy e Leslie Duncan) que depois faziam a ponte para o final da obra, final esse onde toda a ‘normalidade’ por debaixo do Sol era – ou podia ser – eclipsada pela Lua.
Embora fosse um céptico em relação a Dark side of the moon, Fernando Magalhães não deixava de salientar alguns dos seus progressos: «Uma das facetas mais curiosas dos Pink Floyd, relativamente ao Dark side of the moon, é o modo como a utilização do sequenciador, na faixa “On the run”, serviu de base às sequências rítmicas criadas pelos Tangerine Dream, em Phaedra e Rubycon. Aliás, os Tangerine Dream como que construíram um mundo inteiro e autónomo a partir de um excerto da música dos Floyd, precisamente o seu lado mais cósmico e electrónico. Porém, esta componente rítmica dos sequenciadores de “On the run” já tinha antecedentes dentro da obra dos Floyd, nos álbuns Atom heart mother (na suite com o mesmo nome) e em Meddle (na longa faixa “Echoes”). De resto os Floyd influenciaram uma série de grupos alemães; estou a lembrar-me dos Gila, dos Jane, dos Os Mundi, dos Sand (no magnífico Golem).» Com efeito, os Pink Floyd de Dark side of the moon haviam deixado a sua marca no chamado “Período Virgin” (de 1974 a 1983) do grupo alemão. Não só em Phaedra (1974) e Rubycon (1975), mas também em Ricochet (1975) e, de uma forma mais comedida, em todos os álbuns seguintes até Force majeure (1979). Mas voltemos, por ora, ao cepticismo. Luís Miguel Loureiro, jornalista da RTP e co-organizador do Gouveia Art Rock, é peremptório: «O Dark side of the moon nunca me entusiasmou como o fizeram outros trabalhos anteriores dos Floyd (conhecidos posteriormente na minha escala temporal... o meu primeiro contacto com os Pink Floyd foi, obviamente, o ainda menos entusiasmante The wall que nunca cheguei a comprar!... nem em vinil). É claro que quando falo em entusiasmo, ele tem mais a ver com todo o fascínio que sempre encontrei noutros projectos oriundos da década de setenta, que nunca senti nos Pink Floyd. São perspectivas pessoais, portanto, mais do foro emotivo. Mas, passados estes anos, e tentando reouvir mentalmente o Dark side of the moon, também não encontro nele motivos musicais que me façam crescer um súbito entusiasmo racional. Ou seja, parece-me que o grosso da importância da obra dos Pink Floyd se situa antes desse álbum e que o durante e depois pouco ou nada vieram acrescentar.» Eduardo Mota concorda (à Jardel): «Decepção. Terá sido esta a palavra, creio, que mais ocorreu a um jovem melómano no primeiro contacto que teve com Dark side of the moon, no já longínquo ano da graça de 1973. Chegado de véspera ao admirável universo sonoro daquilo que hoje se designa por rock progressivo, num momento em que procurava confirmar, consolidar os seus valores musicais, o novo disco dos Pink Floyd, para além de desiludir, veio baralhar, confundir um pouco a selecção em curso. Para um lado ficavam Beatles, Rolling Stones, Deep Purple, Grand Funk, Black Sabbath e quejandos – os rejeitados. Para o outro, os fascinantes Gentle Giant, Van der Graaf Generator, Genesis, Yes, Tangerine Dream, Renaissance, Soft Machine, Caravan… e os Pink Floyd. Exactamente: os Pink Floyd. Os mesmos que pouco antes surpreendiam com álbuns arrojados como Atom heart mother, Meddle ou Ummagumma. Os mesmos que meia dúzia de anos antes, em pleno Psicadelismo , ousavam assinar “Astronomy domine”, uma peça pioneira, premonitória do próprio Progressivo. Os Pink Floyd de Dark side of the moon não ousavam nada, apenas alindavam; não aprofundavam, preferiam simplificar; não surpreendiam, preocupavam-se em agradar; não experimentavam, optavam por investir com um risco mínimo, com retorno mais que garantido. Os Pink Floyd de Dark side of the moon afinal não eram os mesmos; eram outros. Por isso, decepcionaram o jovem melómano. E confundiram-no na sua selecção de valores. Atraiçoaram-no até na confiança, na fé que ele tinha na produção musical do grupo. Por isso, o jovem melómano não comprou o álbum. Nem desejou que alguém lho oferecesse numa ocasião festiva. Irritou-se até sempre que o ouvia passar na telefonia, na discoteca, no intervalo de uma sessão cinematográfica, ou a ser tocado num baile provinciano pelo ‘jaz’ de serviço.» Por outro lado, Álvaro Silveira, vocalista do grupo de rock progressivo Miosótis, é da opinião que «Dark side of the moon é provavelmente o disco mais importante de toda a obra dos Pink Floyd por inúmeras razões: é a síntese na modernidade dos vários caminhos experimentados na primeira metade da sua discografia; o abrir para a nova sonoridade que se desenvolverá a partir daí, a catarse definitiva da herança deixada por Syd Barrett e a passagem de testemunho a Roger Waters.» Silveira abre o seu baú de memórias: «Quem iniciava a sua adolescência na segunda metade dos anos ’70, tinha duas alternativas: ou alinhava com o processo revolucionário em curso que chegava de Londres e pendurava uns alfinetes pela roupa e pela face, gritando “No future!”, ou assumia a nostalgia de um passado imediato, que a Portugal chegava com um ligeiro atraso, e embarcava no mundo do Progressivo. Este [Dark side of the moon] era o disco que tinha de longe mais audições, individuais ou colectivas, só para ouvir ou também para dançar, só para confirmar um detalhe ou como evento conceptual, com ou sem apoio de substâncias mais ou menos proibidas, com namoradas ou sem elas, em casa ou no pátio do liceu. Qual The lamb lies down on Broadway [Genesis, 1974], qual Close to the edge [Yes, 1972], qual Houses of the holy [Led Zeppelin, 1973]: o Dark side of the moon era o nosso denominador comum!»
Um mergulho em águas cartografadas
Steve O’Rourke, empresário do grupo desde 1971, continuava a edificar o império Pink Floyd. Abria-se a gaveta da caixa registadora. O grupo via-se metido num esquema perigoso: a Gini pagava-lhes a soma de cinquenta mil libras pelos direitos de utilização de algumas canções – música ketchup, portanto. A gravação de Wish you were here (1975) era errática: Waters punha várias vezes o projecto em causa, Gilmour entretinha-se a tocar com os Sutherland Brothers e Mason produzia Rock bottom.
Wish you were here acordava Syd Barrett da sua latência. “Shine on you crazy diamond” e “Wish you were here” eram-lhe dedicadas numa altura em que o grupo necessitava de referências para não sucumbir às pressões da industria, pressões essas muito bem descritas em “Welcome to the machine” e “Have a cigar”. Barrett aparecia no estúdio. Roger Waters (Uncut, Maio de 2007): «Costumava aparecer nos nossos concertos, à espera de poder tocar, penso eu. Não tenho a certeza do que queria ele nesse dia. Foi uma coincidência bizarra porque estávamos a trabalhar na “Shine on you crazy diamond”, precisamente na altura em que ele apareceu. Eu não o reconheci. Pensei que aquele tipo gordo e careca, que comia doces em pleno estúdio, se tratava de um amigo de alguém. Penso que terá sido o David quem disse: “Ainda não perceberam, pois não?”»
No tempo em que os porcos voavam
Fim de Janeiro de 1977. Os Pink Floyd lançavam o seu décimo álbum, Animals. Em palco, a componente cénica do grupo continuava a progredir: Roger Waters usava um osciloscópio que lhe permitia verificar, a cada instante, se continuava afinado e uns auscultadores que lhe devolviam o balanço geral misturado por Brian Humphries; Nick Mason dispunha de uma plêiade de microfones que só entravam em funcionamento quando o objecto que captavam era percutido. Resultado: um som geral com uma clareza admirável.
Para os seus concertos de 1977, os Pink Floyd usariam momentaneamente o espelho reflector anteriormente utilizado pelos Rolling Stones. Far-se-iam ainda acompanhar de um segundo guitarrista, Snowy White, e voltavam a chamar Dick Parry (saxofone e, desta vez, teclas). Gilmour e Waters não comunicavam com o público: apenas um curto e seco «Good night». O vazio era, no entanto, plenamente preenchido por geringonças imponentes: um enorme porco voador, gruas luminosas e um desenho animado de Gerald Scarfe (seria o responsável máximo pelas artes de The wall). Os músicos mantinham, ainda assim, um ar despretensioso: os gigantes da indústria pop não cometiam as mesmas extravagâncias de Elton John, Freddie Mercury (Queen), Mick Jagger (The Rolling Stones) ou Rod Stewart.
Animals, mais do que qualquer outro álbum lançado pelo grupo até essa altura, não só espelhava essa modéstia como fazia com que os Pink Floyd descessem à arena. Com os olhos postos no poema Meat, de Brian Patten («Nós somos o que comemos, e comemos o que somos…»), Animals tornava ainda mais obsoletas as palavras de ordem do Punk, enquanto esboçava uma divisão social em três níveis: os Cães (“Dogs”), seres calculistas e agressivos que procuram, sem olhar a meios, o poder e o dinheiro, investindo a sua energia no pragmatismo e atribuindo-se a si mesmos a mais terrível das sanções: a insatisfação permanente; os Porcos (“Pigs - Three different ones”), existências apenas merecedoras de piedade que se reprimem a si e aos outros; e os Carneiros (“Sheep”), que são enganados, iludidos e mistificados, mas que aceitam a sua situação com resignação.
A marcha dos martelos
Por cima da entrada para o estádio, um enorme letreiro avisava: «NO CAMERA! NO TAPE RECORDER!» A entrada fazia-se de forma ordeira. O recinto estava mergulhado numa obscuridade quase total. Apenas um projector se encontrava aceso, no centro do palco. Gilmour, que se encontrava nos bastidores, volveu um novo olhar para a guitarra que lhe fora entregue minutos antes. Uma loura bem arranjada preparava-se também para ocupar a cena. Era ainda cedo, mas, disse ela, conseguiria desta forma sentir melhor o seu papel. Gilmour respondeu que podia sentar-se, se assim o entendesse. A loura afundou-se imediatamente, como uma massa mole. Gilmour tentava ignorá-la. Concentrou-se em algumas passagens mais difíceis, percorrendo com os dedos as cordas de uma guitarra ainda silenciosa.
Lá fora, a parede estava meia construída e descia em escada, de ambos os lados do palco, deixando entre si uma abertura de cerca de vinte metros por trinta de fundo, onde se achavam alguns instrumentos. Em frente ao palco e a uns cento e cinquenta metros, um Spitfire pairava ameaçador. Soavam rugidos de motores e crepitares de metralhadoras. Do tecto pendiam estandartes negros, vermelhos e brancos com dois martelos cruzados ao centro. Um boneco desarticulado repousava.
O mestre de cerimónia fazia a sua aparição: «Peço-vos para não atirarem petardos porque esta noite haverá explosões suficientes nas vossas cabeças. Lembro-vos que é proibido tirar fotos…» O resto da frase perder-se-ia sob um ribombar do órgão, enquanto o Spitfire mergulhava sobre o palco produzindo um ruído devastador, acabando por se despedaçar numa magnífica explosão. O grupo duplo abria o espectáculo: Andy Brown (músico extra dos Status Quo durante as digressões) no baixo, Willie Wilson na bateria, Snowy White na guitarra e Peter Wood nas teclas.
O público ficava siderado com a qualidade do som quadrifónico. Os efeitos sonoros, o rugir dos aviões, o cantar dos pássaros, as vozes e os solos de Gilmour encontravam-se perfeitamente ligados, soldados; as vibrações, os suspiros, os risos e as gargalhadas formavam um rendilhado que enchia a atmosfera. Os olhares desviavam-se agora na direcção de uma espécie de aranha-gafanhoto que se erguia a uns bons dez metros de altura.
Os roadies continuavam a colocar tijolo sobre tijolo. Os Pink Floyd quase se perdiam algures por trás de uma imensa parede onde figurava, então, a primeira animação de Gerald Scarfe: um caule mole e ondulante que fazia desabrochar uma corola doce, graciosa, atraente. Juntava-se-lhe outro. Após um beijo, a corola abria-se e, lentamente, o estame transformava-se em brecha, promessa de prazeres, sedutora, que se deixava penetrar antes de engolir o próprio corpo que a penetrava.
Os projectores estavam centrados em Gilmour. Wright era o primeiro a desaparecer por trás da parede onde agora se projectava a imagem de um louva-a-deus de cara rude, cabelos grisalhos severamente puxados para trás, olhos azuis de expressão dura e sobrancelhas deslavadas mas que se franziam de forma ameaçadora. Brilhavam ainda as imagens do terrível bailado da paixão devoradora; a corola engolia o seu sexo e o estame que a penetrava, transformando-se depois num pterodáctilo que pairava, ameaçador, sobre uma cidade.
«I need a dirty woman!», gritava Waters. Um telefonema sem resposta e a voz de uma mulher que propunha: «Queres um copo de água?» Ei-la, a mulher loura que antes ocupava a antecena: esguia, graciosa. Lançava um olhar curioso em redor do quarto, às guitarras, à casa de banho. As cortinas dissimulavam as portas dos armários, faziam sobressair o matiz mais claro das paredes e davam uma impressão de regularidade geométrica. O chão encontrava-se pejado de pequenos objectos organizados como se de uma pequena cidade se tratasse. Waters permanecia absorto: pensava por que razão a esposa não lhe atendia o telefone. Cruzava-se com o miúdo que antes fora, com os sarcasmos negros dos professores, com a protecção invasiva e castradora da mãe. Levanta-se depois, e gritava à loura: «Queres ver televisão? Ou experimentar os lençóis? Ou contemplar a auto-estrada? Queres comer qualquer coisa? Queres aprender a voar? Queres ver-me a tentar? Queres chamar a bófia? Achas que já é tempo de eu parar? Por que foges?»
Os espaços vazios haviam sido totalmente ocupados. A imponência da parede esmagava o grupo duplo que agora aparecia com as caras pintadas de branco. «Está alguém aí fora?», repetia uma voz vinda do interior. E novamente a parede se enchia de imagens, desta vez a preto e branco, de uma outra época. Era a guerra. Novamente os Spitfire, as fotos de família, os soldados que partiam, as mulheres de mãos estendidas e as faces que, pareciam sabê-lo, não voltariam a ver. Vera Lynn cantava: «We'll meet again, don't know where, don't know when / But I'm sure we'll meet again some sunny day». Estranhas e aterradoras personagens animadas passeavam-se pelo imenso ecrã: um professor a passar os seus alunos por uma máquina de picar carne; a mãe devoradora, monstruosa, portadora dos primeiros castigos; a esposa de olhos exorbitados, dentes acerados e pernas macilentas provenientes de um sexo deformado; um juiz anafado; e a aterradora marcha dos martelos cada vez mais numerosos.
Os dois grupos juntavam-se em cima do palco. Waters envergava um blusão negro; no braço uma braçadeira com os dois martelos cruzados. Estava prestes a ser julgado pelo seu crime: possuía sentimentos. A parede, enquanto símbolo de reclusão proteccionista e opressiva, seria destruída por ordem do tribunal. Era o fim da descrição minuciosa, quase sádica, maníaca e sem tréguas dos alegados mecanismos de destruição de uma personalidade, que depois se tornava ela própria destruidora de outras personalidades – o homem alienado pelo homem que se transformava em alienante.
A obra era impressionante e o espectáculo também. Contudo, os Pink Floyd há muito haviam cessado de existir enquanto bloco criativo. The wall mostrava um Waters em plena superintendência. Dizia Bob Geldof (Boomtown Rats; organizador do Live Aid (1985); representaria a personagem principal em The wall, o filme de Alan Parker inspirado na narrativa de Waters) à revista Rock & Folk, em 1982: «A personalidade em questão, no filme, é a de Waters. Tudo é autobiográfico, os pormenores mais íntimos são rigorosamente autênticos, pensamentos, paranóias, destruições, sonhos, pesadelos, etc. Por outras palavras, o nível de loucura a que chegou. A sua lucidez, a sua condição. E finalmente o ódio que tem a si próprio – como ao resto das coisas.»
O sonho do pós-guerra
The final cut (1983) tinha como ponto de partida o pós-guerra das Maldivas. Este acontecimento, mais do que qualquer outro anterior, parecia ter exercido um efeito de catarse sobre a psicologia de Roger Waters. As recordações e os traumas ligados à Segunda Guerra Mundial e à morte do seu pai, misturavam-se com as imagens da partida dos soldados, do desespero das famílias e das cerimónias fúnebres para os desaparecidos – uma mistura do então quase presente com o passado longínquo, a dialéctica entre o destino pessoal e as vicissitudes sociais e políticas, que, por se alhear um pouco do simples carácter pessoal presente em The wall, fazia de The final cut um registo bastante mais forte do que o seu antecessor.
Waters libertava toda a impetuosidade do seu ódio por qualquer espécie de socialização organizada, pela política ou pela própria violência (uma das suas muitas contradições). Os Pink Floyd, todavia, desmaterializavam-se: Richard Wright havia sido despedido e Nick Mason não ficaria até ao final das gravações. O resultado, embora apurado, ressentia-se e o título ganhava outras conotações: ‘a montagem final’ de The wall transformava-se também na ‘peça final’ dos Pink Floyd. Sentia-se nele a morte: o último corte, o golpe da espada; morte de um grupo, morte no campo de batalha, morte de um pai, fantasma da morte de um filho, do próprio autor… O aspecto mais paradoxal de The final cut estava no facto de, por entre todo esse pessimismo mórbido, trespassarem ainda assim momentos de esperança, de ternura até (“The gunner’s dream” e “The final cut”).
E depois do adeus
Em 1987, Roger Waters estava a viver a sua era pós-Floyd. Com quarenta e três anos, algumas madeixas grisalhas a aparecer, parecia equilibrado e franco: «Desde que deixei de operar sob a ociosidade dourada dos Pink Floyd, preciso de toda a ajuda que consiga obter» (Creem, Novembro de 1987). Tendo abandonado os Pink Floyd dois anos antes, Waters preparava-se para desencadear uma vasta ofensiva judicial contra os outros Floyd. A razão era simples: os ‘Pink Floyd’ (Wright dava apenas uma perninha) tinham acabado de editar A momentary lapse of reason (1987) e Waters achava que o nome do grupo, «por ter um grande significado para muita gente, não deveria ser usado como chamariz para atrair pessoas». Perderia a acção que, retrospectivamente, apenas serviria para cavar um fosso entre as partes. Seriam precisos quase vinte anos e um mega-evento, o Live8 (2006), para que os Pink Floyd voltassem a tocar juntos. Entretanto a discografia do grupo crescia: A momentary lapse of reason, The division bell (1994) e os álbuns das respectivas digressões, Delicate sound of thunder (1988) e Pulse (1995), vendiam como pãezinhos quentes embora fossem apenas álbuns de música – raramente boa, quase sempre desinteressante.
Em 2007, quando questionado sobre uma possível reunião pela revista Uncut, Waters respondia o seguinte: «Há vinte anos que os Pink Floyd são o bebé do Dave e ele não abre mão disso. Se conseguíssemos pôr para trás das costas os nossos egos e a nossas histórias, poderíamos fazer umas datas em Londres, Nova Iorque, algumas em Los Angeles , Palestina, etc. O esforço não valeria a pena por causa de um só concerto. Mas se o objectivo fosse o de tocar algumas datas, estaria disposto a dedicar seis meses do meu tempo. Tenho a certeza de que o Nick também estaria disposto a isso, mas não o Dave. É a sua prerrogativa e não posso censurá-lo por isso. Nos anos ’70, quando ainda estava no grupo e dávamos imensos concertos em estádios, era eu quem tratava disso tudo. Escrevia a maior parte das canções e preparava todos os espectáculos. Acho muito difícil isso voltar a acontecer…»
Escrito em 2008 para o Bodyspace, a propósito da edição da compilação Oh by the way (EMI, 2007).
Música em imagens VI
Sexta parte de uma lista pictórica que reúne as minhas capas de discos favoritas. Algumas encerram discos soberbos; outras nem por isso.
Domingo, 26 de Abril de 2009
Quando voltares, traz-me um rio que não seja indiferente.
Domingo, 19 de Abril de 2009
No, I have never found
The place where I could say
This is my proper ground,
Here I shall stay;
Nor met that special one
Who has an interesting claim
On everything I own
Down to my name;
To find such seems to prove
You want no choice in where
To build, or whom to love;
You ask them to bear
You off irrevocably,
So that it’s not your fault
Should the town turn dreary,
The girl a dolt.
Yet, having missed them, you’re
Bound, none the less, to act
As if what you settled for
Mashed you, in fact;
And wiser to keep away
From thinking you still might trace
Uncalled-for to this day
Your person, your place.
Philip Larkin, Places, loved ones
Quinta-feira, 9 de Abril de 2009
Adoro quando os tradutores aproveitam o seu objecto de trabalho* para 'malhar' uns nos outros: «[…] A tradução francesa de Moby Dick, de Lucien Jacques, Joan Smith e Jean Giono foge em regra às dificuldades de hermenêutica e, de uma forma geral, é bastante má, não tendo em nada contribuído para esclarecer as dúvidas dos tradutores portugueses.»
* Herman Melville, Moby Dick (Relógio d’Água, 2005)
Livros: Escolhas trimestrais 1/2009:
- Cormac McCarthy, Suttree (Relógio D’Água);
- Edgar Allan Poe, A narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket (Assírio & Alvim);
- John Cheever, Contos completos I (Sextante).
(Atente-se ainda na 'reedição' de Falconer, de John Cheever.)
Quarta-feira, 1 de Abril de 2009
Uma tarde, viu sair do pavilhão uma menina com uma cabeleira revolta, uma menina que chorava e sangrava. Via-a afastar-se; um horror alucinado impediu-o de a ajudar. Quis inspeccionar o pavilhão; não se atreveu. Quis fugir; a curiosidade reteve-o. A menina não vivia longe; os seus irmãos, três rapazes um pouco mais velhos do que Nevers, apareceram pouco depois. Entraram no pavilhão; saíram logo a seguir. Perguntaram-lhe se não tinha visto nenhum homem. Respondeu que não. Os rapazes estavam a afastar-se. Sentiu uma desesperada curiosidade e gritou-lhes: «Não vi ninguém porque estive toda a tarde no pavilhão.» Disse-me que deve ter gritado como um demente porque se assim não fosse os rapazes não teriam acreditado nele. Acreditaram e deixaram-no quase morto.
Adolfo Bioy Casares, Plano de evasão (Cavalo de Ferro, 2007)
come
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